Diálogos em inglês que gostaríamos de ver

– What movie did you see?
– Saw 2.
– Oh, ok, what movieS did you see, then?
– Just Saw 2!

– I HEARD IT, but what were the titles of the movies?

– SAW 2!

– For fuck’s sake, why don’t you tell the fucking titles of the fucking movies? Are you a fuckin’ scratched disc?

– Fuck you, you deaf son of a bitch. Can you hear me saying “fuck you”?
– That’s it, you little prick. I wanna see you talk that way to my fucking friend here, the FUCKING COLT 45!
– Hahaha, Colt 45 is a pussy gun. What are you, a little girl?
– One more fucking word and I’ll make you suffer like those guys at that movie full of tortures and blood and stuff.
– What movie?
– Saw 2!
– Oh, fuck.

O dia em que eu achei a minha alma

Num desses domingos que não poderiam ser mais domingo, onde o tédio se espalha pela humanidade feito vídeos de animais fazendo coisas engraçadas, resolvi que ia fazer algo útil, algo que tornasse minha vida mais prática. E então decidi encontrar a minha alma.
Eu sei, eu sei, parece algo totalmente implausível,dada a minha capacidade praticamente nula de achar qualquer coisa. Mas ei, quão longe uma alma pode ir, certo? Tipo, quase cem por cento de chances que estivesse aqui em casa, mesmo. Alma não é o tipo de coisa que a gente simplesmente perde sem querer na rua, tal qual moedas ou a virgindade.
Eu não havia exatamente traçado um plano de exploração, então resolvi começar pelo óbvio: as prateleiras da estante aqui do quarto que sustentam meus livros, meus filmes e meu óculos escuro parecido com os dos xerifes norte-americanos (sequer considerei a hipótese dela estar no óculos, entretanto, pois não ostento um bigode parecido com os dos xerifes norte-americanos). Dei uma olhada superficial por tudo, mas em vão. Só o que achei nessa primeira inspeção foram notas de dinheiro presas em uma ratoeira no lugar onde deveria estar o livro Clube do Filme. Talvez uma abordagem mais direta e mais específica fosse necessária. Então, esperançoso, peguei o Ficções, do Borges, virei na horizontal e folheei rapidamente as páginas para ver se algo caía dali. E caiu, mas era só um cupim intelectual que se aventurava por talentosos ensaios e crônicas. Contudo, confesso que isso não chegou a ser uma grande decepção, ou uma surpresa negativa. Eu sabia que era uma tentativa fadada ao fracasso. Afinal, encontrar uma alma comum e infame no meio das palavras arrebatadoras de Borges é algo tão provável quanto vencer a loteria da Babilônia.
Eis que, lembrando dos valorosos ensinamentos de Hollywood, apostei no clichê e puxei triunfante o DVD de Clube da Luta, o qual tem – ou ao menos deveria ter – escrito à caneta na lateral os dizeres “Projeto Bíblia”. Era algo tão óbvio que não havia como não estar ali. Por isso talvez tenha sido uma coisa boa o fato de realmente não estar ali, pois indica que eu ainda consigo surpreender a mim mesmo. Tudo que achei dentro da caixinha do DVD foi o meu alterego imaginário, que parece como eu gostaria de parecer, fode como eu gostaria de foder, é inteligente, capaz, e, mais importante, é livre de todas as formas que eu não sou. Sujeito bacana ele, apesar de ligeiramente esquizofrêncio.
Dei uma vistoria caprichada no Xbox, onde vi apenas um punhado de conquistas virtuais, nas latinhas de cerveja, que abrigavam única e exclusivamente histórias embaraçosas, e na mesa de botão, que guardava nas imperfeições de sua velha madeira uma infância inteira, mas desconhecia totalmente as desilusões de uma vida  adulta. Por um momento imaginei tê-la encontrado por entre as camisetas de futebol, e cheguei a dar uma volta olímpica pela casa em comemoração. Entretanto, ao pegar a camiseta da seleção da Espanha, lembrei que ela não possuía o número 10 nem o nome Fábregas às costas, e me dei conta de que, por ser ela mesma incompleta, minha alma jamais se esconderia em um lugar também incompleto.
Fui verificando todos os cantos, todas as possibilidades, dando voltas e voltas pela casa, mas eram sempre buscas infrutíferas. E, tal qual acontece com todos que tentam realizar algo no domingo, desisti. Simplesmente deitei na cama, frustrado. Eu parecia estar quase lá, perto o suficiente pra senti-la, distante o suficiente para não alcançá-la. Só que faltava algo, e esse algo não me deixava completar a busca.
Foi quando uma última possibilidade seduziu minha mente. Uma bastante simples e óbvia, admito, mas nem por isso menos interessante. Então, tomado por uma sensação que todos conhecemos bem, olhei debaixo da cama. E sorri, comemorei, levantei os braços, dei pulos de alegria. Eu a havia encontrado: uma palheta. Puxei ela e a segurei entre os dedos, sentindo o som praticamente ecoar sozinho daquele pequeno objeto. Com a mão livre peguei o violão, que guarda nas imperfeições de sua madeira os exageros da adolescência e a divertida maturidade de um início de vida adulta. Demorei tempo suficiente afinando ele, me certificando de que cada nota soaria exatamente como deveria soar. Testei alguns acordes, batendo a palheta de leve nas cordas já desgastadas. E comecei a tocar Thunder Road.

Não comprei a ideia

Hoje eu fui até o Iguatemi pra assistir a O Discurso do Rei (mais tarde posto a crítica em algum lugar). Ah sim, abro aqui um parênteses pra dizer que, apesar de ótimo filme, a indicação dessa película pra nada menos que doze Oscars é é uma metáfora sobre como a humanidade está tomando o caminho errado, e fecha parênteses. Enfim, Iguatemi. Matando tempo antes do cinema, dei uma circulada pelo shopping. E me ocorreu que não apenas eu sou indiferente à maioria das lojas do recinto, mas também que as ligeiramente atraentes me intimidam. Elas são bonitas demais, organizadas demais. Repletas de protocolos a serem seguidos, o que enterra aquela ideia de que toda ação provoca uma reação, pois nessas lojas cada ação provoca o início de uma das regras do manual dos vendedores.
Sei que criticar a artificialidade de um shopping center é tão pertinente quanto dar bóias a um peixe ou chuteiras a um Robinho. Mas o ponto aqui não é o consumismo, e sim a feiúra decorrente desses protocolos e arquiteturas e paisagismos e etcéteras. Tudo tão milimetricamente calculado que não faz efeito. Tudo tão impunemente branco que chega a ser risível. É como uma daquelas gurias que realmente é bonita, só que daí chega na formatura e ela tenta traduzir o photoshop pra vida real, tomando um porre de maquiagem e cortes de cabelo na tentativa de ficar perfeita, quando tudo que consegue é uma passagem de trem para a estação “eu achava que ela era gata, mas olhando bem agora…”. Uma feiúra tão ridícula, tão desgraçadamente óbvia que eu fico parado ali na frente, pensando se devo entrar na loja e me submeter a um determinado número de procedimentos que teoricamente me levariam até a compra, mas só me afastam dela. Vejam bem, o problema não é a artificialidade do ambiente; o problema é ver tudo tão metodicamente arrumado para gerar determinado tipo de reação, tentando vender o status de vitória, quando tudo aquilo na verdade representa apenas pessoas sem imaginação se comunicando com outras pessoas sem imaginação. A chatice em nível Defcon 1.
Lição de casa a todos: desenhar por cima das linhas.

Levando na conversa

Sou total e completamente iletrado na arte de conversa furada (ou conversa de elevador, small talk, seja lá como chamam). Provavelmente, quando eu nasci, Deus substituiu essa parte do meu cérebro pela turma de neurônios que me permite saber de cor a escalação da seleção da República Tcheca que jogou a Euro 2004 (Cech; Grygera, Rozenhal, Ujfalusi e Jankulovski; Galasek, Poborsky, Rosicky e Nedved; Baros e Koller). Ou talvez seja efeito colateral de bater tantas vezes a cabeça na parede durante partidas de videogame. Seja qual for o motivo, não estou apto a realizar tal tipo de conversa.
Isso, claro, faz com que eu acabe frequentemente em situações que exigem a habilidade de prosear levianamente, ou seja, exigem uma carga descomunal de conhecimento sobre assuntos que são tão importantes para mim quanto, digamos, o povo é importante para um governo. Novelas, reality shows, tempo, animais de estimação, trânsito, responsabilidades da prefeitura, entre outros, são temas mais do que comuns nesse tipo de conversa. Temas que, ao entrar na minha cabeça, são sumariamente caçados, capturados e executados, sem nenhum perdão ou espaço para fuga. Sem sobreviventes. Sem testemunhas. Eu até poderia colocar um pouco do meu interesse em cada assunto, mas convenhamos, taxistas gostam de falar sobre o tempo que vai fazer durante o fim de semana, e não paradoxos temporais que podem resultar no fim do universo.
Portanto, venho aqui declarar que sou incompatível com a humanidade. Aceito que me levem para uma ilha deserta, longe de tudo, e me deixem lá para que vocês possam conversar em paz e eu possa fazer desenhos do Sonic na areia em paz. Tudo que eu exijo é que eu possa levar comigo alguma distração, algo pra me manter ocupado durante épocas difíceis – a Scarlett Johansson tá de bom tamanho.

Vitória técnica

O Vencedor (The Fighter)
4/5
Direção: David O. Russel
Roteiro: Scott Silver, Paul Tamasy e Eric Johnson
Elenco
Mark Wahlberg (Micky Ward)
Christian Bale (Dicky Eklund)
Melissa Leo (Alice Ward)
Amy Adams (Charlene Fleming)
Micky Ward é um boxeador pacato, tranquilo e que, treinado por seu irmão Dicky Eklund, passou os últimos dez anos levando sarrafo atrás de sarrafo nas lutas. Totalmente dominado pela mãe empresária e pela família (eles possuem sete irmãs – sim, imagine como fica o carro deles com aqueles adesivos de família que viraram moda), Micky encontra na garçonete Charlene o início de um novo caminho. E no meio dessa balbúrdia toda, incluindo aí o vício de Dicky por crack, Micky tenta se superar cada vez mais para se tornar um grande boxeador e também porque histórias de superação costumam comover o pessoal do Oscar.
O Vencedor é menos uma história de ascensão de um boxeador e mais a história de uma família tão instável e disfuncional quanto o MSN Messenger. Tipo um The Osbournes sobre boxe, assim. Contando com um elenco que atinge níveis estratosféricos de qualidade, o filme foge de fórmulas tradicionais (ok, da maioria delas, pelo menos) e consegue soar pertinente dentro de sua proposta, mesmo que, aqui e ali, acabe caindo naquela grande armadilha de urso que é o clichê.
“Deixa eu botar minha roupa de Batman que acabo com esse desgraçado em dois bat-segundos!”
A película já começa mostrando o carisma de Dicky ao fazer a personagem caminhar pelas ruas da vizinhança cumprimentando todo mundo, enquanto uma equipe de TV segue atrás para fazer um documentário sobre o sujeito – e essa cena serve como exemplo da dinâmica familiar deles, onde Dicky é o centro das atenções e Micky, tal qual o Palmeiras, fica sempre relegado a segundo plano. A partir daí o filme constrói as tramóias com bastante cuidado, fazendo com que a família compactue com as ilusões de grandeza de Dicky mesmo quando é o irmão que está se preparando pra entrar no ringue. Graças a esse tipo de comportamento (como, por exemplo, quando estão saindo de uma luta onde Micky apanhou feito uma senhora de idade aprendendo a usar o computador e todos se importam mais em ouvir o irmão falar de como derrubou Sugar Ray Leonard), o público realmente sente que o protagonista está sendo injustiçado e sofre com ele – e o quando o sujeito se apaixona por Charlene, uma moçoila cativante e de personalidade forte (“eu não vou me esconder da sua família”), entendemos o motivo daquela atração e a importância que Micky dá ao fato de finalmente estar “em primeiro lugar” pra alguém. E ao invés de apelar pro dramalhão total, como poderia fazer, o filme investe em conflitos que se mostram inevitáveis, tornando a relação entre aquelas pessoas mais densa e palpável (principalmente Dicky e Mickey. Inclusive ambos, como irmãos, brigam e se reconciliam toda hora – quando Micky ajuda o irmão com os policiais, por exemplo, ou quando Dicky, mesmo após uma discussão forte, dá dicas de boxe a Micky).


O Vencedor ainda mostra um excelente jogo de pernas ao expor as estratégias do protagonista antes de algumas lutas (“Boxe é um jogo de xadrez”) e a manipulação feita por empresários (tipo ao utilizar alguns lutadores menos dotados tecnicamente como “escada” para outros subirem). É uma pena, então, que em determinados momentos a película se atire nas cordas: a cena da prisão, por exemplo, é conveniente demais, soando tão falsa que poderia fazer parte do Big Brother Brasil; em um determinado conflito no ginásio, Micky muda de ideia rápido demais, como se o roteiro tivesse apontado uma arma pra cabeça dele e dito “seguinte, você tem que mudar de ideia agora pra iniciarmos a caminhada rumo ao clímax”; a ascensão de Micky ocorre muito rapidamente, e o público fica sem ter a dimensão da coisa toda; e até mesmo a tentativa de estabelecer um dos lutadores como um oponente “malvado” no final acaba dando com os burros na água. São coisas que não chegam a comprometer, mas tiram um pouco da força do filme.
Desde o início o diretor David O. Russel busca uma abordagem natural, com a câmera na mão e sem partir pra uma iluminação ou uma fotografia muito rebuscadas (em alguns momentos, inclusive, as imagens das lutas ficam meio distorcidas e com cores lavadas, como se estívessemos assistindo na televisão). Confiando no elenco SELECIONÁVEL que tem em mãos, utiliza planos mais longos, até mesmo para ilustrar a proximidade das personagens – e é interessante como Russel volta e meia coloca Micky no canto do quadro ou em uma marcação mais para o fundo da cena, ajudando a construir o deslocamento e a sensação de ficar em segundo plano que atingem Micky. Contribui também para o bom andamento da coisa toda uma direção de arte vitoriosa, que reconstrói com propriedade a época tanto em cenários quanto em figurinos (vejam como o apartamento de Micky é vazio, de alguém sem personalidade, e como o boné virado de Dicky ajuda a ilustrar a imaturidade da personagem), além de contar com uma excelente trilha sonora.
Mas a grande TORTA DE SORVETE do filme é mesmo seu elenco: sempre com uma postura contida, tom de voz controlado com um olhar cansado, Mark Wahlberg convence o espectador da passividade do protagonista, ao mesmo tempo em que possui carisma o suficiente para que torçamos por ele; Amy Adams encarna Charlene com energia, tornando a moça uma personagem forte e cativante, essencial para que o espectador entenda porque Micky se interessa por ela; e Melissa Leo faz de Alice uma personagem intensa, que, sempre a ponto de estourar, não economiza nos trejeitos na hora de expressar sua opinião. Entretanto, quem chega chutando tudo e assumindo a camisa 10 é Christian Bale. Sempre inquieto, enérgico e repleto de tiques (repuxa a boca, mexe os olhos, não consegue ficar com as mãos paradas), características que evidenciam seu vício, Bale faz de Dicky uma figura ao mesmo tempo carismática e trágica, que na sua empolgação infantil e auto-destruição conquista de vez o coração do espectador.

Apesar de uma ou outra falha, O Vencedor tem a alma pura e mostra-se digno do investimento feito nele. E consegue soar original mesmo trabalhando com aquela velha história de superação de problemas pessoais em prol de realizar algo grandioso. E, através dessa estratégia adotada, o resultado final do filme acaba fazendo jus ao seu título em português.

Branco no preto

Cisne Negro (Black Swan)
5/5
Direção: Darren Aronofsky
Roteiro: Mark Heyman, Andres Heinz e John Mclaughlin
Elenco
Natalie Portman (Nina Sayers)
Mila Kunis (Lily)
Vincent Cassel (Thomas Leroy)
Barbara Hershey (Erica Sayers)
Winona Rider (Beth Macintyre)
Nina é uma bailarina tímida e reprimida que pensa, vive e respira sua arte (exatamente o que os homens fazem com relação ao sexo, só que com balé). Buscando um lugar de maior destaque na sua companhia, ela acaba alçando vôo (trocadilho obrigatório) até ser a estrela principal no espetáculo O Lago dos Cisnes, interpretando o Cisne Branco e o Cisne Negro. Mas, ao mergulhar no papel (trocadilho obrigatório), Nina começa a ceder à pressão de se soltar, de se libertar, de conseguir interpretar os dois lados – além de sentir inveja de uma bailarina novata, Lily, que consegue justamente ser solta e ASSANHADA como Nina gostaria de ser. E o medo de ser substituída por Lily só faz com que a moça entre ainda mais em parafuso.
O balé é uma arte bela, encantadora, cheia de movimentos graciosos e apresentações delicadas. Enfim, coisa de mulherzinha. Mas em Cisne Negro o diretor Darren Aronofsky nos leva além desse mundo aparentemente branco e singelo, atirando o espectador em uma viagem intensa e devastadora à mente de Nina, aos sacrifícios que ela precisa fazer, a tudo que ela precisa renegar, construindo uma obra tão visceral e cheia de simbolismos que o filme faz um violento jogo de rúgbi soar como uma partida de Paciência no computador. E faz isso de forma tão complexa que, ao final da projeção, é impossível não levantar da cadeira, correr pela sala do cinema fazendo aviãozinho e depois tatuar “Natalie Portman” no coração.
Na lagoa da minha cidade os cisnes não são assim.
Concebido com o mesmo cuidado e atenção que um adolescente concede ao seu videogame, o roteiro de Cisne Negro é uma sucessão interminável de vitórias. Já no início somos apresentados à dedicação de Nina ao ver que, assim que sai da cama, a pimpolha vai direto ensaiar e arrumar sua roupa de balé na frente do espelho. Aliás, os cuidados do filme ao mostrar algumas artimanhas e rotinas da área (como quando Nina arruma a sapatilha para dar mais estabilidade, ou quando ela faz uma massagem após o ensaio e vemos o preço que a dedicação cobra do corpo da moça) dão ainda mais verossimilhança à história e ajudam a tragar o espectador até aquele mundo. É aos poucos também que a personalidade de Nina vai sendo construída através da presença constante e castradora da mãe (em pessoa ou ligando pelo celular), da admiração excessiva por Thomas, do medo de perder o papel de Rainha Cisne e, principalmente, da tentativa de ser perfeita em cada movimento (tanto que várias personagens sugerem à protagonista ela que trabalhe menos e relaxe mais. Infelizmente ninguém citou O Iluminado com “só trabalho sem diversão fazem de Jack um bobalhão”. Fracos). E é interessante notar como pequenos momentos e elementos (um olhar de Thomas pra Lily; os momentos de preocupação excessiva da mãe; a visão de Nina de que o papel de Rainha Cisne é mais imprtante do que o Santo Graal, ilustrada muito bem em uma determinada visita à Beth; entre outros) aos poucos vão ganhando mais dimensão, mais urgência. E tudo isso faz com que o público realmente sinta quando a coisa toda começa a rachar e Nina se entrega a um “eu” que ela jamais havia conhecido antes.
Para manter o climão sombrio e angustiante, digno de uma visita ao banco, Aronofsky utiliza a fotografia com um grão mais grosso, resultando em uma imagem suja, crua, que contribui para dar ao filme um aspecto de triste realidade. Daí o diretor ainda segue a Nina pra lá e pra cá com a câmera na mão, buscando um estilo documental (muitas vezes a moça é filmada de costas enquanto caminha, em uma abordagem vitoriosa que Aronofsky já tinha utilizado naquele PRÊMIO NOBEL que é O Lutador) e utilizando planos longos, essenciais para o público compreender as coreografias do espetáculo de balé, por exemplo, ou acompanhar contemplativo enquanto a protagonista chora pitangas pelos cantos. E na mesma mesa VIP da direção e da fotografia senta uma direção de arte épica, espalhando espelhos como se não houvesse amanhã (que cansam de refletir os sentimentos de Nina, muitas vezes inclusive representando a personalidade partida da moçoila) e brincando bastante com a questão de cisne negro e cisne branco (não apenas Nina veste sempre branco como muitas das “adversidades” encontradas pela protagonista – Lily, o velho no metrô que representa sua culpa por ter se masturbado, sua própria mãe, entre outras – vestem preto. Da mesma forma, conforme uma determinada mudança vai entrando em curso, o figurino da protagonista vai incorporando o pretinho básico. E é interessante perceber que escritório e o apartamento de Thomas – que, por ser o diretor, por determinar o futuro daquelas meninas, é quem está acima do bem e do mal – possuem as cores preto e branco na mesma medida, de forma harmônica), além de ajudar a construir a personalidade reprimida da protagonista através do quarto dela, todo rosa e cheio de bichinhos de pelúcia (incluindo, entre eles, um cisne negro). Cisne Negro ainda conta com uma trilha inspirada, que, inicialmente minimalista, vai ganhando em grandiosidade e intensidade conforme a trajetória de Nina vai se realizando.
Trajetória, aliás, que Natalie Portman percorre com entrega total, em uma atuação épica e digna das maiores reverências (Oscar é pouco: Nati merece no mínimo um prêmio de melhor jogador da Copa do Mundo). Sempre com um tom de voz baixo, a atriz mantém uma postura contida, constantemente olhando para o chão, como se o seu comportamento sempre estivesse sendo julgado – e é através do olhar assustado e da respiração ofegante (em um trabalho supimpa do design de som) que percebemos como ela se sente deslocada e com medo ao dançar as coreografias do cisne negro. Além disso, Natalie consegue expressar emoções genuínas sem soar caricatural, deixando o espectador consternado e assustado com o caminho que Nina toma. E, para delírio geral, a atriz é acompanhada por um ótimo elenco: enquanto Mila Kunis soa extremamente natural e descontraída como Lily, Vincent Cassel encarna Thomas com vontade e paixão e Barbara Hershey consegue mostrar ao mesmo tempo sua preocupação e seu ressentimento com o sucesso da filha.
Visceral, inteligente e visualmente arrebatador, Cisne Negro é uma experiência perturbadora pela mente de alguém que, sob uma pressão absurda, tenta escapar de si mesma ao mesmo tempo em que não quer se desprender de seus valores. Um jogo de reflexos e espelhos tão repleto de significados que me sinto compelido a discutir alguns deles – algo que farei na segunda parte da crítica, abaixo, e que, por conter spoilers, deve ser lida só por quem já assistiu ao filme.
Parte 2: Michael Jackson estava errado
Quando Jackson cantou it doesn’t matter if you’re black or white ele certamente não estava pensando em Nina Sayers: destinada a ser um cisne branco por toda a sua vida, Nina vê sua personalidade partir ao meio com a pressão do papel principal e, aos poucos, vai deixando o cisne negro tomar o controle, o que acontece em uma cena visualmente tão bonita que ela poderia facilmente substituir alguma das tradicionais sete maravilhas do mundo.
Mas vamos do início. Totalmente infantil e reprimida, Nina gosta de ter a mãe sempre por perto, ficar sempre protegida. Entretanto, o papel de Rainha Cisne cobra dela um amadurecimento sexual e uma desenvoltura que ela ainda não possui – algo que é evidenciado pela chegada de Lily, que, por ter as características que faltam a Nina e pela semelhança física, acaba se tornando como uma contraparte da moça. À medida que o filme avança, Nina e Lily vão se aproximando aos poucos, enquanto ela vai se afastando da mãe (algo que é representado em uma cena linda onde, perto de três espelhos, cada uma fica refletida em um enquanto o do meio fica livre, evidenciando o espaço entre ambas. Os reflexos inclusive invertem a posição das duas, mostrando que a partir dali os papéis serão invertidos).
É então que, durante um jantar, Lily oferece uma blusa – preta – para Nina colocar. A moça vai ao banheiro e a veste por cima da blusa branca que estava usando. O simbolismo é  bastante óbvio: pela primeira vez o cisne negro dentro de Nina sobrepujou o branco, e é logo após essa cena que ela sai pra dançar e se divertir, algo que não fazia antes (aliás, percebam que, entre os planos rápidos durante a festa, há um breve momento onde Nina surge com a mesma maquiagem que utilizará no espetáculo final ao interpretar o cisne negro). Quando volta pra casa com a Lily imaginária, Nina se enxerga em um espelho que é constituído de vários pequenos, como se sua imagem literalmente estivesse dividida; e depois, quando discute com a mãe, vemos a “Lily” caminhando pelos espelhos, pra mais tarde ser seguida pelo reflexo da protagonista, que se afastava mais de sua infância (e do cisne branco) e caminhava em direção à sua contraparte, o cisne negro. Dentro do quarto ela se entrega totalmente à paixão, algo essencial para a história não só porque vemos Mila Kunis e Natalie Portman se beijando (obrigado, Aronofsky), mas também porque a cena representa o momento onde Nina se apaixonou de vez por seu “lado negro”.
A partir daí os reflexos de Nina no espelho tornam-se mais dissonantes, mostrando que sua personalidade está cada vez mais partida. É então que, no dia do espetáculo, Thomas diz a ela “a única pessoa no seu caminho é você mesma. É hora de se desprender dela”. Após cair no palco justamente por ter ficado em seu próprio caminho (ela vê seu rosto em uma das dançarinas), Nina volta ao camarim e encontra a Lily imaginária. Entendendo que, como disse Thomas, precisava se livrar de si mesma, Nina ataca e mata seu alterego imaginário com um pedaço do espelho, assumindo novamente o controle de sua consciência. Esse ato de crueldade consigo mesma, eliminando de vez os vestígios de cisne branco da sua personalidade (como ela mesma dissera antes, a “garota doce” não existe mais), era o passo final na transformação de Nina em cisne negro – tanto é que, em suas derradeiras palavras , Nina sorri e diz “eu senti”. Algo que, antes da transformação e mesmo passando quatro anos na companhia de dança, a frágil e tímida garota jamais havia feito.