É ferro na boneca pós-apocalíptica

Dredd
4/5

Direção: Pete Travis
Roteiro: Alex Garland, baseado nas personagens de Carlos Ezequerra e John Wagner.

Elenco
Karl Urban (Juiz Dredd)
Olivia Thirlby (Anderson)
Lena Headey (Ma-ma)

O Juiz Dredd e Anderson, uma juíza novata, são chamados em uma torre de babel genérica em Mega City One pra investigar um McGuffin. Logo eles se veem trancados lá com uma gangue sanguinolenta e a cobra começa a fumar sanguinolentamente enquanto Dredd e Anderson atacam seus inimigos com frases de efeito e balas (nesse nível de LETALIDADE).
Dredd é o filme que Os Mercenários deveria ter sido: joga em cena uma premissa básica, simples, só para que possa construir cenas de ação sensacionais e fazer suas personagens obliterarem tudo com diálogos curtos e certeiros. É um filme que não se leva a sério – e isso não significa que é um pastelão avacalhado, e sim que compreende sua dimensão de ser “apenas” um filme de ação, ao invés de apelar pro “vamos tornar isso sério fazendo com que o protagonista investigue uma conspiração que, ao final, eventualmente incluirá alguém do alto escalão da polícia/CIA/SWAT/força onde o policial está”.

E, como todo bom filme de ação desenfreada, tem uma mina gata.

Assim, antes que você possa dizer “uau, eu queria levar essa loirinha pra casa e…”, um monte de sangue 3D já espirra na galera. E o melhor é que, entre tudo aquilo que Dredd aniquila sem dó (e é muita coisa), está o achismo de que cena de ação massa tem camêra lenta + fast forward: as coreografias da película são tensas, violentas e envolventes, sempre deixando o espectador perturbado ao mostrar que ali a sanguinolência corre solta (Tarantino fatalmente curtirá). Os corredores escuros, claustrofóbicos, criados pela ótima direção de arte, também ajudam na empreitada, tornando o cenário um pote metálico gigantesco repleto de tensão. Enquanto isso, Pete Travis leva a pancadaria ao máximo, sem medir quem ou o que tenha que destruir no meio do caminho – e o fato de que tanto os vilões como Dredd acabam sempre tirando uma carta da manga pra superar o adversário é tipo o bacon em cima da pizza.
Além disso, a gangue que bota contra os juízes no filme distribui uma droga chamada “slow-mo”, que, como o nome indica, faz as pessoas enxergarem o mundo em câmera lenta. Uma situação que permite ao filme criar fantásticas sequências explorando o recurso, principalmente em momentos de ação, onde vemos o terror das pessoas antes de terem os miolos varados por testosterona em formato de balas. Chega a ser algo quase poético de tão bonito (e uma diferenciação na estética da violência atual, já que se preocupa com o visual da coisa toda, e não em simplesmente atirar sangue pra todo lado). Eli Roth inevitavelmente vai comprar o DVD e colocar na sua coleção na prateleira que diz “pornôs”.
Já o roteiro, como citado anteriormente, investe na simplicidade da história, oferecendo espaço de sobra para a ação bem coreografada pedalar a porta e entrar dando tapa na cabeça de todo mundo. Entretanto, isso é longe de dizer que o roteiro é ruim – pelo contrário, conhece a limitação da sua trama e trabalha dentro dela trazendo obstáculos cada vez mais difíceis e, essencial, frases de efeito devastadoras – momentos como “pare aí” “por que?”, ou “os criminosos não colaboraram” não apenas são engraçados e épicos como ajudam a criar a personalidade daquelas pessoas, mostrando que elas estão dispostas a cagar todo mundo a pai nem que pra isso tenham que cagar todo mundo a pau antes. E ainda sobra um pouco de espaço para tornar a relação “tutor/aluna” entre Dredd e Anderson bastante crível, sem apelar para pieguices, momentos dramáticos destoantes ou o famoso discurso no final quando alguém está em vias de morrer (mas não vai).
Completamente tomado pela testosterona – após um treinamento que aparentemente envolveu meses de futebol, cerveja e mulheres – , Karl Urban usa sua postura rígida e contida, seus movimentos concisos e sua boca bizarramente puxada pra baixo pra transformar Dredd em 1,80m de puros CULHÕES, convencendo o público de que aquele sujeito pode realmente arrebentar um inimigo só com um RANGER DE DENTES. Já Olivia Thirlby consegue tornar Anderson um pouco mais complexa sem soar frágil, mantendo uma hesitação no olhar em alguns momentos mas sem descambar para o complexo de mulherzinha (e o filme também foge do velho clichê de que o protagonista tem que salvar a mocinha, fazendo com que a personagem soe ainda mais forte). E Lena Headey cria uma vilã absolutamente hipnotizante: além de possuir uma beleza diferente, a atriz faz de Ma-ma alguém que olha todo o terror à sua volta com a displicência de um técnico da seleção brasileira, como se tivesse acostumada àquilo. Essa postura despreocupada, que apenas em um ou outro momento revela um pingo de tensão, faz da moça uma vilã mais assustadora – parece que todo aquele ambiente é natural à ela, e que ela sempre está um passo à frente.
No final das contas, Dredd acaba se tornando uma ótima surpresa. Pode não ter um roteiro dos mais complexos, nem significados mais profundos, mas faz muito bem aquilo a que se propõe. Tipo de filme pro cara assistir com uma garrafa de cerveja ao lado, um copo de cerveja na mão, um cooler de cerveja ao lado da poltrona e gritando “é isso aí!” a cada quatro minutos.

Ser criativo, mas sem perder o formulismo jamais

Ted
4/5

Direção: Seth McFarlane
Roteiro: Seth McFarlane, Alec Sulkin e Wellesley Wild

Elenco
Mark Wahlberg (John Bennett)
Mila Kunis (Lori Collins)
Seth McFarlane (Ted – voz)

John Bennett é um garoto solitário e desprezado pelas crianças da vizinhança. Até que um dia, achando que o mundo é um filme da Disney, ele deseja que Ted, seu ursinho de pelúcia ganhe vida – o que acaba acontecendo. Anos depois, John é um adulto infantil, preguiçoso e sem rumo na vida, mas que pega a Mila Kunis, o que anula todos os outros defeitos, e continua com a parceria de seu amigão Ted para fumar maconha, ver Flash Gordon e disparar tiradas politicamente incorretas.
Aliás, “politicamente incorreto” é uma palavra que define bem Ted (vejam bem, eu escrevi “politicamente incorreto”, e não “nojeira + sexo”. Achei melhor explicar porque algumas pessoas confundem os dois, né Todo Mundo em Pânico?). É como se o filme começasse 20 anos após um “final feliz” da Disney, elaborando como seria a situação e subvertendo completamente aquele conceito de história fantástica. E o melhor, faz isso com personagens assaz carismáticas, CGI anabolizado e fuzilando tudo com diálogos vitoriosos.

Zé Colmeia completamente obliterado.

Claro, ajuda bastante o fato de Ted ser um ursinho de pelúcia completamente sarcástico, boca suja, tarado e viciado em cultura pop, entre tantas outras características que ele compartilha com adolescentes do mundo todo. Mas desde o início Ted já mostra ter o DNA do humor definitivo, metralhando tiradas épicas já na narração inicial (“se reúnem para bater nos garotos judeus”). Aliás, é um filme que se apoia bastante nos diálogos, fugindo, na maior parte das vezes, daquele humor óbvio (também conhecido como “seria engraçado se a gente colocasse uma senhora de idade mostrando o dedo do meio!”), mas isso de forma alguma diminui o ritmo da película – a troca de frases certeiras e o bom elenco aniquilam qualquer vestígio de verborragia e deixam a produção bem dinâmica. É alguém despejando alguma sacada esperta o tempo todo, sempre pegando o espectador de surpresa. Sabem aquele tipo de comédia que não só faz o cara rir, mas também deixa ele com vontade de SER UM URSINHO DE PELÚCIA QUE ARMAZENA DIÁLOGOS CERTEIROS SOBRE O UNIVERSO? Ted é assim.
A produção, entretanto, não esquece de que o público precisa gostar das personagens para se envolver na história. John e Ted são extremamente infantis, sim, e bastante agressivos, mas a relação entre os dois sempre soa verdadeira. Há uma clara cumplicidade ali, desenvolvida na forma como se chamam, como se tratam, nas piadas internas e por aí vai. Da mesma forma, Lori não é uma versão de cabelo escorrido do Sauron, como costuma acontecer com frequência nessas histórias: ela entende a relação entre o namorado e o ursinho de pelúcia (que frase bizarra, essa) e até se insere nesse dinâmica, só passando a iniciar uma briga quando vê que está realmente sendo colocada de lado. Assim, é um trio cativante, carismático, deixando o espectador sempre ansioso pra saber o que acontecerá com eles.
Infelizmente Hollywood, esse garoto travesso que gosta de capturar passarinhos, exerce uma influência pesada em tudo que se aloja por ali, e o diretor/roteirista Seth McFarlane não conseguiu fugir disso: apesar do humor inteligente em 90% da projeção, o filme eventualmente mergulha na piscina da obviedade, achando que o público é composto apenas por adolescentes bêbados e que só colocar alguém/algo simulando sexo com alguém/algo é engraçado. Além disso, a ausência de um conflito maior, que resultasse em um clímax mais grandioso, claramente forçou a galera a atirar ali no meio uma traminha envolvendo sequestro e tal, que até tem momentos engraçados, mas cuja única função e não fazer sentido nenhum e roubar tempo (tempo que poderia ser usado no desenvolvimento do conflito entre John e Lori, por exemplo, cuja briga também soa um pouco forçada). E não podemos nos esquecer do final tipicamente hollywoodiano, embora tentem disfarçar com uma ou outra tirada boa (não adianta maquiar, dá pra ver claramente que naqueles momentos o filme levantou os braços e se rendeu ao formulismo). É uma pieguice que não combina com o resto.
Trabalhando em uma produção que se concentra bastante em diálogos, Seth McFarlane utiliza uma linguagem bastante simples, deixando que o texto e os atores sejam o grande diferencial (mas merece ser parabenizado por uma sensacional luta que acontece em determinado ponto, coreografada com extrema vitória). E não dá pra deixar de citar o fatal trabalho de CGI, tornando Ted crível em todas as cenas, na interação com os atores, apostando em detalhes tanto nos planos mais abertos como em closes. Em nenhum momento dá pra duvidar que aquele boneco está realmente ali, falando e fumando maconha. Por pouco não levantei da poltrona com uma tocha na mão e acusei todos os envolvidos com o filme de bruxaria.
Contando ainda com ótimas atuações de Mark Wahlberg (sempre com os olhos arregalados e uma expressão perdida, ilustrando o lado infantil do protagonista), Mila Kunis (sempre carismática e humilhando a própria Afrodite) e do próprio Seth McFarlane (na parte da voz, claro), além de um design de som bacana (notem como os efeitos sonoros fazem toda a diferença na hora da briga), Ted é uma produção que consegue ser criativa, original, engraçada e divertida. Poderia ser mais se em alguns momentos não tivesse se acomodado tanto, mas tudo bem, dessa vez passa. Até porque ver um ursinho de pelúcia tirar sarro de um gordinho correndo já é algo que vale o preço do ingresso.

Falta de Identidade

O futebol brasileiro não é mais o melhor do mundo. E isso é mais velho e óbvio que os gols do Cesinha no Elifoot 98. Mas não é só nisso que eu vou ficar. Ele perdeu a sua identidade por culpa do seu treinador e uma mudança na escolha de suas peças. Eu explico:

Em 2006, o hoje técnico da Seleção Brasileira, “Primo” Menezes (porque eu já prefiro aos poucos afastar qualquer parentesco com esse cara hoje em dia) treinava o Grêmio num 4-4-2 com Lipatin no elenco, acreditem, e por motivos óbvios tinha que arranjar uma forma de parar o Inter na final do Gauchão, time que estava prestes a ganhar a libertadores e o mundial ali na frente. Foi ali, e BEM ALI (aos corinthianos de plantão), que ele inventou de usar 1 atacante só, com 5 jogadores no meio. Meses mais tarde a distribuição foi se delineando para 2 meia-atacantes bem abertos nas pontas, dois volantes que saíam para o jogo, nas meias, e um “volante-voltante”, como sei lá quem anda dizendo por aí, centralizado.

Esse time, em 2007, chegou à final da libertadores com Diego Souza e Carlos Eduardo, de ponteiros, Tcheco e Lucas, de volantes que chegavam à frente, e o Gavillán, de volante mais recuado.

No Corínthians, pouco mais à frente, o treinador teve de readaptar o meio de campo, puxando mais pra frente o cara centralizado, aí sim usando um camisa 10, o Douglas, com os dois volantes que saem pro jogo atrás dele. Isso deu bem certo, considerando que o time podia treinar todos os dias e o único centroavante do time era o Gordo Fenômeno.

Esse “esqueminha” tem tudo a ver com o tal 4-2-3-1 que tantos falam ser o padrão na Europa. Eu confesso que não presto muita atenção no esquema dos times europeu, até porque ver o Barcelona jogar me enrola totalmente. Mas se, de fato, eles jogam assim, o “Primo” nada mais fez do que levar pra seleção um esquema mais europeu de jogar, correto?

Se você puxar na memória, o “Primo” chegou lá na CBF dizendo que iria jogar no 4-3-3, uma mentira deslavada que eu já percebi antes da primeira escalação. O esquema é o mesmo do Grêmio e do Corínthians, com os 5 no meio de campo. Tudo bem até aí. Agora é que começa o problema:

Já reparou que neste período pós Copa do Mundo a maioria dos jogadores convocados do meio pra frente jogavam no Brasil? E você já reparou que a imensa maioria dos times grandes do Brasil joga no 4-4-2? Você já reparou que o Santos, com Neymar, joga no 4-4-2, sendo o Neymar segundo atacante?

Óbvio que não dá pra comparar muito, mas no último jogo contra a China, naqueles 8×0, o Neymar fez 3 gols. O mesmo Neymar que joga quase nada na seleção, naquele jogo apareceu! Reparou quem era o centroavante do jogo? Pois é, não tinha, era só o Neymar… com o Hulk e o Lucas nas pontas…

Reparem que o esquema da nossa seleção não tem “liga” com os esquemas que os jogadores treinam, e o treinador parece não se tocar disso, fixando uma forma de jogar com cara mais européia, e isso sem contar as óbvias más convocações dele. E considerando que a safra fora do país não ajuda muito e há um apelo de vários lados para levar mais e mais jogadores que jogam aqui, a coisa não parece ter muita solução.

Nesta quarta-feira, vamos ver muito provavelmente um time com centroavante, com o Neymar jogando na ponta e, seguidamente, correndo pro ataque, fugindo do esquema do treinador e criando um buraco onde não deve. Acredito que a experiência do Luis Fabiano naquela zona do campo ajude, mas não dá pra saber se ele joga. Antes de criticarmos os jogadores, é necessário entender que muito dos erros não são por culpa deles, principalmente de posicionamento e erro de passes. É preciso que o treinador enxergue de forma “macro” a situação e, com base nisso e no que seus jogadores realizam nos clubes, monte o esquema tático mais adequado e coloque na nossa seleção aquilo que, realmente, o Brasil tem de melhor, seja na parte técnica ou tática.

É isso.
Abraços!

Breve análise dos últimos livros que li

Não sou crítico literário, nem manjo de literatura (ao contrário de outras áreas onde transbordo excelência, como bater o joelho em quinas de mesinhas), mas, como qualquer pessoa com um blog, resolvi colocar aqui algumas opiniões sem nenhum embasamento na esperança de que tenha utilidade pra alguém:
Onde os Velhos Não Têm Vez – Cormac McCarthy
Dos livros do McCarthy que eu li, talvez Onde Os Velhos Não Têm Vez seja o menos pesado – e isso que se trata de uma história com um psicopata alucinado, tráfico de drogas, assassinatos entre gangues e um xerife filosoficamente pessimista. Ainda assim, é um veículo mais que apropriado para o escritor criar uma história envolvente, com personagens e diálogos vitoriosos (“gastei metade do dinheiro em uísque e mulheres. O resto eu desperdicei”) e aquela escrita ao mesmo tempo rebuscada e fluida, que consegue tornar até os momentos mais violentos (e acreditem, existem momentos violentos. Iraque é um carrinho de algodão-doce perto do livro) cheios de puro lirismo. Além disso, McCarthy também aborda de forma profunda a incapacidade das pessoas de entenderem o novo mundo, de se encaixarem em um contexto brutalmente diferente daquele onde cresceram. Aliás, mais até: de ACEITAR esse novo mundo como o “normal”, a coloquialidade, fugindo dele justamente por considerar inaceitável fazer parte desse novo cenário.
Pode ser também que eu já tenha pegado o livro com uma pré-disposição a gostar, já que sou extremamente fã do filme. Mas é só uma hipótese.

O Livro de Areia – Jorge Luis Borges
Borges tem aquele hábito constante de deixar os leitores pensando “bem, é isso. Não fui alfabetizado” ao final de seus escritos. E O Livro de Areia é mais um dessa estirpe, uma coletânea de contos dos mais variados temas que, com frequência, parece que preenchem o vasilhame da alma do leitor com aquele conteúdo de que as almas são feitas, até transbordar. Dou um certo destaque para O outro, o disco e o conto que dá título ao livro, mas, tratando-se de Borges, a apreciação de cada caractere é obrigatória (ainda que fique um pouco aquém de Ficções e Atlas, meus favoritos do autor). Não só o texto é diamante polido à exaustão, como as tramas, as personagens e o desenrolar das histórias mostram a imaginação absurda de Borges e a verdadeira biblioteca de referências culturais que o sujeito era, levando o leitor por caminhos imprevisíveis, cativantes e com uma cachoeira de maravilhamento no final.
Ubik – Philip K. Dick
Sabe quando algum guri mais velho, provavelmente um gordinho, porque é típico dos gordinhos aprontar dessas, chega pra ti e explica que o Papai Noel não existe? Bem, é mais ou menos isso que Philip K. Dick (“K”, para os íntimos) faz em seus livros – mas, ao invés de Papai Noel, ele faz isso com a realidade.
Ubik é mais uma obra dessas onde o escritor coloca um ponto de interrogação na realidade. É um thriller criativo, intenso, sem momentos assustadores mas assustador no geral, e com reviravoltas, bem, assaz interessantes. Além disso, possui um mistério, mas um mistério bom, daqueles que faz sentido quando chega ao final, que se sustenta, e que, ao longo da história, sequestra o GLOBO OCULAR do leitor e só devolve após a última frase. E é incrível como um livro tão, sei lá, TOCADOR DE BUMBO (não sei se fica claro, mas me parece uma expressão perfeita pra definir Ubik, já que a todo momento algo de impacto acontece, algo importante, um “bum”) consegue fazer o cara se questionar a respeito de questões morais da tecnologia, de realidades, de sonhos, enfim, pensar a respeito dos acontecimentos da história ao mesmo tempo que é impiedosamente envolvido por ela. Um talento que Philip K. Dick sempre teve, diga-se de passagem, e que nesta obra vai mais alto e longe do que o Curiosity da NASA. Sujeito que manja do riscado, esse.  
Rum – Diário de um Jornalista Bêbado – Hunter S. Thompson
Nem lembro direito porque comprei esse livro. Acho que é porque eu tinha algum vale e sobrou saldo só pra um livro pocket. Não costumam me atrair muito tramas que se passam em lugares onde, em uma versão cinematográfica, seriam fotografados com grão granulado e de forma saturada para ilustrar o calor (sim, eu sei que é um critério completamente absurdo e quase doentio. Mas é um critério).
Entretanto, Diário de um Jornalista Bêbado se mostrou por demais interessante – realmente interessante, e não interessante do tipo “estou lendo uma obra muito comentada”. Possui uma galeria de personagens bastante variada e cativante, que por sua vez acabam se envolvendo em situações bastante variadas e cativantes, desde um quase-linchamento até um carnaval selvagem em uma ilha perto de Porto Rico (onde se passa a balbúrdia). E é legal acompanhar o quase-niilismo do protagonista, aquele lance meio “estou aqui só pra fazer uns bicos e beber umas vodkas antes de partir para a próxima aventura”, que até pode ser meio batido, mas aqui funciona bem (talvez porque o sujeito seja um jornalista chinelão da época onde os jornalistas eram chinelões, e não um jornalista não-chinelão tentando se passar por jornalista chinelão porque o estereótipo é assim). De qualquer forma, apesar de não ir muito a fundo no seu protagonista, o livro é instigante e divertido e engraçado e dramático e dá pra ler ele pensando que é um guia prático para a boemia absoluta.
Guitar Zero – Gary Marcus
Guitar Zero – The New Musician and the Science of Learning possui uma proposta interessante pacas, mas acaba desafinando (trocadilho obrigatório) em alguns momentos por enrolar muito nos momentos em que o autor está começando a aprender, ou exagerar na abordagem auto-depreciativa, ou até mesmo por constatar o óbvio (o cara leva um capítulo inteiro para concluir que tanto talento como prática são necessários para formar um bom músico. Certo, ele explica como essas coisas acontecem no cérebro, mas, de qualquer jeito, a sensação é a de que foi um capítulo inteiro gasto para nada). Ainda assim, existem ótimos momentos, como as comparações entre música e linguagem e a descrição de estudos que reforçam alguns argumentos. Tipo de livro que é bom pra ler, mas ainda melhor se o cara estiver lendo outra coisa ao mesmo tempo pra dar um tempo quando Guitar Zero fica muito maçante.
31 Canções – Nick Hornby

Se for parar pra pensar, 31 Canções é quase uma continuação de Febre de Bola, só trocando o futebol por canções. E é interessante como Hornby consegue filosofar a respeito das canções (não só da canção em si, mas também do que ela significa para ele) para dar início a reflexões sobre a música pop, cultura pop, relacionamentos, amizades, carreira profissional e muitos, muitos outros tópicos – incluindo o próprio futebol. E faz tudo isso com um texto descontraído e divertido, sem soar forçado, tornando a leitura bastante agradável e viciante. 
Tudo bem que, lá pro final, a coisa começa a ficar um pouco repetitiva e até mesmo um pouco vazia, tipo quando o cara tem que fazer um trabalho pro colégio e fica enrolando por um tempo para completar o número mínimo de linhas. Além disso, me incomoda um pouco como Hornby com frequência faz questão de dizer que não é um crítico musical, e, além disso, tenta diminuir essa galera. Parece que ele está quase pedindo desculpas por estar naquele papel, julgando e analisando obras de arte, para que o público não o tome como mais um “crítico esnobe”. Mas são questões menores, que pouco influenciam na BELEZURA de 31 Canções, uma obra que fica na cabeça após o final da leitura – se não pelos textos, ao menos pelas canções que o leitor desconhece e certamente irá atrás.

Onde questiono o mundo a respeito das bulas

Eu tenho um problema com as bulas de remédio. Tenho um problema com muitas coisas, na verdade, incluindo sobremesas desprovidas de chocolate e qualquer convocação da seleção brasileira de 1995 pra cá (sentimento que Nick Hornby descreveu tão bem no magistral Febre de Bola), mas as bulas realmente são danadas. Vejam bem, eu sou um sujeito facilmente impressionável. Quando vi Sinais no cinema, 18 anos e quase meio cavanhaque na cara, fiquei tão apavorado que, ao voltar pra casa, olhava para os lados para ver se algum dos alienígenas do filme ia dar as caras por ali (felizmente, nenhum deles. Só alguns poucos usuários de crack. Alívio). Assim, toda vez que eu leio uma bula de remédio, e meu olho se choca com aquele espaço intitulado “efeitos colaterais”, eu passo imediatamente a sentir cada um deles.
PROVA EMPÍRICA: Teve um ano que eu tomava muito Plasil. Muito. Tipo, quase todo dia. Ok, talvez nem tanto. Enfim. O Plasil sempre me dava uma leve sonolência, que eu considerava normal. Daí um dia, provavelmente possuído pelo demônio, fui ler a bula do dito-cujo. E descobri que eu estava errado – ele não dá sono, dá MUITO sono, e meu organismo rapidamente se adaptou às novas informações. Também descobri que ele podia causar depressão, e adivinhem? Cada vez que tomava Plasil, me transformava em um filme do Iñarritu. FIM DA PROVA EMPÍRICA

Afinal, o que as bulas entregam de bom? Qual o efeito delas, a não ser uma futura miopia graças às letrinhas em fonte tamanho dois dividido por quatrocentos e oito? Pensem bem, a informação da bula nada mais é do que o truque por trás da mágica – e, sem o mistério, a mágica não funciona. Imaginem se a Coca-Cola viesse escancarando tudo que os caras usam pra fazer um líquido preto e gasoso e viciante, ou que, ao invés das fotos bonitas e sacadinhas de texto, o McDonalds colocasse nas caixinhas dos sanduíches que eles são feitos com CARNE DE RENA TRANSGÊNICA. As pessoas imediatamente passariam a sentir o gosto da rena transgênica, ou do sangue de alien usado pra deixar a Coca-Cola preta.

Acredito que existam duas soluções possíveis. A primeira, mais radical, é aniquilar, triturar, desossar e saquear todas as bulas de remédio do mundo. A segunda, mais moderada (e preferida pela Globo), é utilizar expressões coloquiais na parte de efeitos colaterais – ao invés de “sonolência”, colocar “dá um baque no cara”; ao invés de “depressão”, colocar “tipo mina levando toco”; ao invés de “pressão baixa”, colocar “trabalhar no funcionarismo público”. E assim por diante. Afinal, é a ilusão, e não a risada, o melhor remédio.