100 metros rasos para os 30 anos

Dia desses, como de costume, eu estava saindo do prédio onde trabalho para, como não de costume ultimamente, pegar um ônibus. Entretanto, como de costume toda vez que eu pego ônibus, ao atravessar aquele redemoinho de vidro e metal que batizaram de “porta giratória” vi o ônibus imediatamente deixando a parada para onde eu me dirigia. Um rápido cálculo entre a distância da próxima parada, a minha sofrível capacidade atlética e a incrível habilidade que o trânsito de Porto Alegre tem de jogar na retranca e fechar todos os espaços levou à conclusão de que sim, havia tempo de sobra para realizar tal plano insano. Assim, sem mais nem menos, disparei na correria desenfreada, carregando ainda nas costas uma mochila e uns bons sete ou oito meses desde que dei um pique assim.
A hora do rush porto-alegrense cumpriu seu papel, impedindo o ônibus de andar sequer 10 metros sem queimar uma Guerra no Iraque de combustível graças ao “arranca-e-para” (que eu carinhosamente chamo de “seleção holandesa”). Isso permitiu a minha triunfante chegada na parada com tempo de sobra, com direito à música-tema de “Rocky” tocando (na minha cabeça). Eu gostaria muito de dizer que todas as pessoas no local se levantaram (mesmo as que já estavam de pé) e aplaudiram e houve uma câmera fazendo um travelling circular naquele momento, mas a única reação ali foi aquele leve aceno de cabeça de solidariedade resignada (vocês sabem, quando a pessoa faz um quase-sorriso e franze a sobrancelha para tentar expressar algo do tipo “já passei por essa situação e entendo, mas não a um nível que me faça querer conversar ou fazer algo a respeito disso”).
O que me surpreendeu, entretanto, foi que eu não estava ofegante. Apesar do longo período sem atividades físicas que se estendessem além do raio entre o sofá e a TV, cheguei bem à parada. Um pouco cansado, claro, mas nada além do normal. Foi uma corrida legal, e eu estava ali, inteiro, pronto para encarar a orgia de um ônibus lotado. Talvez o tempo não chegue na gente com tanta rapidez assim.
Daí fui subir no ônibus e percebi que meu joelho esquerdo, que até então havia ficado sempre na dele, iniciou um protesto enviando sinais nervosos ao cérebro que, sacana do jeito que é, os interpretou como “dor”. Uma dor que dura até hoje, e que provavelmente vai ter que me levar ao médico, e que provavelmente vai resultar em algum tratamento.
Somando isso ao fato de que muitos amigos meus de idade semelhante já passaram pelos mais diversos apuros envolvendo a mesma região do corpo, inclusive com dois ou três deles rompendo os ligamentos, chego à única conclusão possível: a questão sobre a vida não é que o tempo vem e te deixa de joelhos; é que o tempo vem e te deixa sem joelhos.

O maldito processo criativo

O processo criativo é algo que, normalmente, as pessoas têm em alta conta, tratam com uma certa reverência, independente de como ele acontece ou no que resulta (tipo o Tim Burton, assim). O que é muito bonito e legal e tal, confere aquela atmosfera de “artista expressando seus sentimentos e opiniões” que tanto faz as meninas mostrarem os peitos em shows de rock. Mas, na minha experiência, a situação é costumeiramente desgastante, repleta de encruzilhadas, indecisões, momentos onde o cérebro sai para almoçar e não dá sinais de que vai voltar logo. Sim, normalmente há um estopim que é aquele insight inicial onde várias ideias acabam se juntando para montar algo novo (processo que eu chamo carinhosamente de “Cognição Lego”), fazendo com que o cara se sinta iluminado e tenho que resistir à tentação de gritar algo como “eureka!” ou “é isso aí, cacete!” ou ainda “Juliana, estou te largando porque agora vou virar um escritor/músico/cineasta/pintor de sucesso e ter várias mulheres aos meus pés e um cachorro chamado Shakespeare”.
Entretanto, o que se segue a essa empolgação inicial são horas de água batendo na pedra em busca de um espacinho mínimo para passar. É tudo tão pensado e exprimido até a último gota que me impressiona como a coisa eventualmente parece natural. Sabe quando vocês compram alguma coisa e a coisa vem com algum defeito e desencadeia um processo de troca estressante, infernal, muito possivelmente fatal para algum dos envolvidos? É exatamente assim que a arte acontece. Não à toa Philip Roth, ao se aposentar dos livros, disse que “a batalha finalmente terminou” e Douglas Adams cunhou a sábia frase “odeio escrever, adoro ter escrito”.
Pensando a respeito, talvez o processo criativo seja uma grande metáfora da vida, onde batalhamos internamente, escondemos desejos, construímos uma personalidade apenas para parecer natural.  O mesmo processo que moldou estes três singelos parágrafos aqui é intrínseco a todos os seres humanos, fazendo parte de sua identidade desde sempre.
A conclusão é inevitável: pessoas são posts de blogs.

Troca a marcha mas não troca o discurso

Acho que poucas coisas denotam com tanta força a preguiça da sociedade quanto o trânsito. Tipo, o trânsito é sempre ruim, e todo mundo sempre reclama, e todo mundo sempre faz algum gesto incisivo para reforçar seu argumento de que o governo ou as autoridades competentes ou algum aplicativo ou o destino ou outra pessoa devia consertar o trânsito, que segue tornando as ruas uma grande conexão discada e apontando o dedo para Robert Louis Stevenson e dizendo “você estava certo sobre aquele lance de Dr. Jekyll e Mr. Hyde, cara!”.

Falo isso porque, aqui em Porto Alegre, a situação se encontra em estado que só posso definir como tresloucado: motoristas brincam de quebra-cabeças com o posicionamento de seus veículos, ônibus passam tocando o terror no meio da galera, buzinas despejam ID pra tudo que é lado da algazarra. Deve ser até meio frustrante o cara ver todos aqueles comerciais de carro enaltecendo a liberdade apenas para comprar um e descobrir que a nossa liberdade só vai até onde começa a liberdade dos outros, nesse caso representada por um para-choque quinze centímetros à frente. E o pior é que a bunda dos carros sempre parece um rosto feliz, o que torna tudo ainda mais agoniante porque dá a impressão de que aquele amontoado de engrenagens e metal está tirando sarro de você.

O pior é que não há perspectiva de mudança. É como se tivéssemos sido vencidos pelos automóveis e fossemos obrigados a viver nessa ditadura de eterno estresse, sem nenhum Robespierre da vida chegar gritando “Liberté! Egalité! Formas alternativas de locomoção no espaço público!”. E olha que os elementos que compõem a atual conjuntura automobilística na cidade (todos eles relacionados a expressões como “raiva”, “frustração” e “bater a cabeça no volante”) são bem parecidos com aqueles que dão início a uma revolução. Mas parece que o ditado se corrobora e nós, os criadores, estamos fadados a viver presos dentro de nossas criaturas, quer o sinal esteja fechado ou aberto.

Dentro desse contexto, o ar-condicionado é o ópio do povo.

Breve análise dos últimos livros que li – 2

Como o post anterior foi um sucesso (UMA pessoa comentou), resolvi dar sequência:

A Erva do Diabo – Carlos Castañeda
Na verdade, foi a segunda vez que eu li A Erva do Diabo – provavelmente já tem algum post comentando o livro por aí. De qualquer forma, continuo muito impressionado com os relatos de Carlos Castañeda, a forma detalhista com que ele descreve os procedimentos passados por Don Juan e toda a vividez dos relatos alucinógenos (olha o paradoxo), que nunca são menos do que sensacionais. É tipo um filme do David Lynch na vida real. Mas o escritor não foca só nesse comportamento de membro dos Rolling Stones, mostrando também as explicações de Don Juan, o objetivo de cada planta, de cada viagem. A ideia, no geral, é fazer com que Castañeda abra sua mente para outras realidades (Phillp K. Dick deve ter adorado isso), e os alucinógenos são uma forma de, tipo, ligar o botão “turbo” nesse conceito. Só a parte final, mais focada em dados e exposta como um verdadeiro relatório antropológico é que mais uma vez me pareceu extremamente murrinha: pela segunda vez, não passei da quinta página.
Zen e a Arte da Manutenção de Motocicletas – Robert M. Pirsig
Romances filosóficos que realmente fazem o cara pensar, ao invés de simplesmente tentarem impor frases de biscoito da sorte ao longo da narrativa, são raros. Zen e a Arte da Manutenção de Motocicletas é um desses: através da viagem do Robert Pirsig por paisagens bucólicas americanas, somos apresentados a uma série de ideias sobre diversos assuntos (inclusive sobre ideias) e a um intrigante mistério, que acaba sendo a chave de tudo. É uma jornada de auto-descoberta cadenciada, contemplativa, perfeita pra ser lida em um fim de semana na praia com uma garrafa de cerveja ao lado, ou muitas garrafas de cerveja. Porque parece a versão impressa daquelas longas conversas que se tem com um grande amigo, sobre as coisas da vida, quando ambos estão no segundo estágio de bebedeira (quando já passaram da euforia e entram no momento de seriedade, pouco antes do desarranjo total).

Conversas com Scorsese – Richard Schickel
Ok, esse é um livro mais de nicho, mas nem por isso menos importante. Além de um grande cineasta e ostentador de sobrancelhas, Scorsese manja muito de cinema. E este livro reúne a conversa dele com o crítico Richard Schickel  onde discutem pormenores, curiosidades e decisões nos filmes do tio Martin e também reflexões sobre o cinema em geral. Por  vezes o crítico tem espasmos de Ricardo Teixeira e se acha mais importante e tenta aparecer mais na conversa, além de falar que nunca gostou de Clube da Luta, mas é um livro extremamente agradável de ler, repleto de curiosidades para os amantes do cinema e até mesmo aprendizados. Além disso, Scorsese parece ser uma pessoa incrivelmente broder.

Ficando Longe do Fato de Já Estar Meio que Longe de Tudo – David Foster Wallace
Pra mim esse é o livro de 2012, embora eu não tenha certeza se ele foi lançado em 2012 mesmo (e a descomunal distância de três metros entre nós dois agora é o suficiente para impedir que eu verifique a data da edição). De qualquer jeito, merece ser carimbado com a expressão “livro do ano”; o olhar extremamente perspicaz e inspirado de David Foster Wallace nessa coleção de ensaios só pode ser definido como chute de trivela no ângulo. A capacidade do cara de fazer associações e desenvolvê-las em frases tão bem construídas que certamente exigiram um projeto de engenharia antes é acachapante – e, ainda que com uma linguagem bastante rebuscada, essas frases muitas vezes são desconcertantemente engraçadas, fazendo o leitor gargalhar enquanto as pessoas ao redor pensam que ele é louco por rir sozinho. Nada aqui é previsível. Wallace sempre tem uma abordagem criativa e interessante para cada projeto, e parece fazer tudo com tanta desenvoltura que, durante a leitura, muitas vezes pensei “bem, é isso, sou um analfabeto”. Recomendo fortemente a todos que gostam de coisas muito legais e que te deixam muito empolgado.

Paris é uma Festa – Ernest Hemingway
Na verdade, Paris é uma Festa nada mais é do que uma forma de se entristecer com a realidade: ainda que Hemingway com frequência lembre de suas dificuldades financeiras e das vezes que não tinha dinheiro sequer para almoçar, o livro basicamente acompanha o escritor enquanto ele escreve, passeia por Paris, toma vinho e faz viagens com sua esposa ou um de seus broders, tipo o F. Scott Fitzgerald, sabe? Por mais BONO VOX que o cara seja, sempre bate aquele suspiro de “por que eu não posso passar os dias em Paris escrevendo, enchendo a cara e andando com o F. Scott Fitzgerald?”. Claro que é tudo um pouco romanceado, mas o texto do Hemingway é tão envolvente e cativante em sua simplicidade que é inevitável um efeito Meia Noite em Paris se apoderar do cara durante a leitura – e por mais alguns meses após o final.

Mais Estranho que a Ficção – Chuck Palahniuk
Assim como Ficando Longe do Fato… , este Mais Estranho que a Ficção é uma coleção de ensaios. No entanto, Chuck Palahniuk tem uma visão bem menos, digamos, invasiva das coisas. Ele escreve sobre pessoas que participam de dérbis de destruição de tratores e pessoas que constroem castelos com as próprias mãos sem nenhum julgamento, apenas colocando a história deles no papel. Na verdade, o Palahniuk sempre teve uma identificação com essa galera marginalizada, à parte da sociedade “comum”, e aqui ele se mescla com esses corinthianos da vida de uma forma única. O livro ainda conta com momentos onde o escritor narra e reflete a respeito de histórias que aconteceram com ele mesmo, sempre chegando nesse olhar bem pessoal e alternativo, que as vezes é muito engraçado, as vezes é curioso, as vezes é extremamente impactante e sempre é muito bem escrito.

The Rings of Saturn – W. G. Sebald
É mais ou menos a mesma proposta do livro das BIKES ali em cima: sujeito vai fazer uma viagem pelo interior da Inglaterra, e, paralelo aos acontecimentos da pernada em si, fica reletindo sobre a vida e alguns eventos históricos que ocorreram por ali. Entretanto, ao contrário do livro de Robert Pirsig, The Rings of Saturn dança na corda bamba, alternando alguns momentos inspirados pacas com outros que tiraram a carta “maçante” no tarô. Apesar disso, e de não ser uma leitura muito fácil, o resultado final é positivo e o livro acaba inspirando reflexões e ideias. Só talvez seja bom ter em mente que essa não é uma daquelas obras do tipo “comecei a ler de noite e não dormi e liguei pro trabalho e disse que tava doente pra continuar lendo e cancelei o jantar de noivado à noite porque eu realmente queria saber o final da história”.

Vertigem Digital – Andrew Keener
Andrew Keener é o autor de um livro chamado O Culto ao Amador, que não li, mas, pelo que entendi, xinga pessoas que têm blogs, o que torna uma ironia grande eu estar falando dele aqui. Mas divago. Em Vertigem Digital, Keener aborda o tema das redes sociais, mas de uma forma um pouco pessimista. Ok, bem pessimista. Ele comenta a respeito da perda de privacidade, do exibicionismo, da massificação do pensamento, da perda da identidade, entre outras coisas extremamente sérias. O autor fala que, ao invés de um Big Brother (o do Orwell, não o do Boninho), agora temos vários Little Brothers para ficar nos espionando e criando uma sociedade pasteurizada, onde a individualidade perece frente ao coletivo. Keener usa bastante estudos e exemplos e acontecimentos para ilustrar suas opiniões, e, mesmo que vez ou outra pareça um pouco exagerado ou fatalista demais, Vertigem Digital é uma leitura extremamente pertinente para estes tempos onde as pessoas fazem questão de expor tudo de suas vidas aos outros.