Quem tem medo do lobo mau?

O Lobo de Wall Street (The Wolf of Wall Street)
5/5

Direção: Martin Scorsese
Roteiro: Terence Winter, adaptado do livro de Jordan Belfort

Elenco
Leonardo DiCaprio (Jordan Belfort)
Jonah Hill (Donnie Azoff)
Margot Robbie (Naomi Lapaglia)
Matthew McConaughey (Mark Hanna)

Nos anos 80, quando Wall Street era uma terra de charme, dinheiro e cocaína, Jordan Belfort se junta aos corretores do distrito financeiro mais famoso do mundo. Logo ele começa a ter sucesso, usar drogas, transformar o escritório em um pardieiro e, basicamente, viver a vida da forma mais ensandecida possível.

Não fosse a troca para a tecnologia digital, qualquer pessoa poderia achar que o copião de O Lobo de Wall Street foi revelado em uma latinha de energético: o filme é intenso, forte, rápido, divertido, engraçado e completamente empolgante. É, assim como Cassino (também dirigido por Scorsese), uma história de crescimento financeiro baseado em atividades no limbo entre o legal e o ilegal – só que a nova película troca a violência pela loucura da riqueza, consumismo e luxúria. De certa forma, imagino que O Lobo de Wall Street seja o equivalente fílmico a cheirar cocaína, o que faz sentido, visto que esta é um elemento importante da película.

Assim como anões.
Para isso, Martin Scorsese cria uma atmosfera enlouquecida não só na mise-en-scène – onde tudo é intenso e gritado e gestual e acaba de alguma forma com mulheres nuas -, mas também na forma, com a montagem ágil e a câmera constantemente em movimento (naqueles travellings elegantes que o Scorsese sabe fazer muito bem). É uma construção assaz inspirada, que se aproveita da quebra da quarta parede, câmera lenta, tela congelada e flashbacks rápidos (o do carro e o do avião, por exemplo) para tornar a coisa toda mais dinâmica – claro, o diretor usa esses recursos com parcimônia, sem exagero, para não tirar a atenção do que está acontecendo em quadro. É importante que a forma reforce a atmosfera da cena, e não chame a atenção para si mesma (imaginem um filme desses dirigido por Guy Ritchie e vocês terão uma ideia).
E é uma decisão mais do que acertada para companhar a trajetória de Jordan Belfort, que, com frases do tipo “e eu fiquei puto da cara porque era menos de um milhão por semana”, personifica toda a loucura que sempre se imaginou de Wall Street. Claro, o roteiro faz questão de mostrar o quanto ele é dedicado, competente (a cena onde todos param para ver ele trabalhar) e patologicamente apaixonado pelo que faz (as conversas por telefone onde ele fica gesticulando para o interlocutor), transformando-se em uma pessoa arrogante o suficiente para achar que pode subornar dois agentes federais – um comportamento que divide com Donnie, mais um tresloucado repleto de falas épicas (“quer cheirar carreiras de fermento, é isso?“) e que ajuda Jordan a transformar a Stratton Oakmont no pardieiro definitivo. Percebam que as características dos dois são tão fortes que, a partir de certo momento, aceitamos toda a balbúrdia da empresa como algo natural. A megalomania da dupla, regada a muita cocaína e quaaludes, é ilustrada de forma brilhante por situações completamente absurdas e que, muitas vezes, humilham a palavra “épico” (aquela cena envolvendo os quaaludes poderosos sem dúvida constará de qualquer lista de melhores momentos em 2014. E recém estamos em janeiro).
Além disso, a narração em off é bem utilizada para explicar e avançar a história sem jamais ser excessivamente didática, o que acaba a tornando mais um dos elementos divertidos do filme (“é como tomar sol antes dele aparecer“). Mas o problema é que, no meio dessa diversão total e absoluta, não há muito espaço para caracterizar as personagens: praticamente todas falam do mesmo jeito e reagem do mesmo jeito e buscam a mesma coisa. Ok, dá para entender isso como uma generalização ao espírito de Wall Strett, uma declarção de que todos ali eram fora da casinha, mas isso diminui o envolvimento com qualquer situação mais pessoal (o drama de Jordan no final, por exemplo). Aliás, há uma tentativa de arco dramático extremamente desnecessária, colocando o protagonista inicialmente como alguém buscando trabalhar de forma honesta: a caracterização inicial, “do bem”, e tão rápida e superficial que jamais gera impacto, tornando frases como “você virou uma pessoa completamente diferente” soam deslocadas feito a canela do Anderson Silva.
Já o elenco surge completamente em chamas, terraplanando tudo e todos à sua frente com atuações poderosas. Começa com Matthew McConaughey (o grande “como assim?!” de 2013) construindo um Hanna gestual e amalucado – mas repleto de carisma – e continua com Jonah Hill, que encarna Donnie com a intensidade de um gordinho tentando se vingar de tudo que os gordinhos sofraram na infância, criando sequências memoráveis (como a do peixe) e utilizando sua habilidade ímpar de xingar para tornar tudo ainda mais megalomaníaco (além de usar trejeitos um pouco mais femininos, denunciando a dubiedade da sexualidade do sujeito). E se Margot Robbie consegue encantar com seus olhares e sorrisos e beleza (certamente a atriz foi feita no Photoshop e criada usando uma impressora 3D), Leonardo DiCaprio tem a grande atuação de sua carreira, transformando Jordam em uma força da natureza, a energia em forma de pessoa, sempre falando alto, sempre tendo certeza de sua posição e sempre doando 100% de tudo que tem (um contraste interessante com o Jordan mais jovem, que chega para conversar com Hanna falando de forma bem mais tranquila e baixa). O ator ainda tem certa dificuldade de se perder na personagem, especialmente nos momentos mais íntimos, mas é seguro dizer que carrega O Lobo de Wall Street de forma épica.
Enquanto isso, a parte técnica pode se comportar de forma tão megalomaníaca quanto Jordan, pois atinge níveis definitivos de qualidade – e é uma pena que os efeitos especiais do filme, completamente “escondidos”, talvez jamais tenham o reconhecimento que merecem. E boa parte da função deles é em prol da direção de arte, que se encarrega de mostrar os exageros daquele mundo, com cenários sempre grandiosos e luxuosos, decorados quase como palácios, ao mesmo tempo em que transforma o escritório em um ambiente despojado ao variar os tipos de terno e colocar alguns figurantes sem o paletó (e é interessante perceber que, quando era “honesto”, Jordan vestia um terno cinza claro, ao passo que depois que a “sujeira” começa as cores ficam escuras). Como se não fosse o suficiente, a trilha inspirada consegue marcar o ritmo da brincadeira e ainda atuar de forma simbólica (por exemplo, os versos de Everlong “if anything could ever feel this real forever”) são ouvidos logo antes da vaca ir pro brejo.
Assim, O Lobo de Wall Street é uma grande e frenética vitória por parte de seus realizadores. Scorsese tira de letra a dificuldade de filmar exageros sem soar caricatural ou destoante, e isso em uma história cujo protagonista leva uma vida tão intensa que é capaz de dormir pilotando um helicóptero. Repleta de grandes sacadas, cenas inesquecíveis e Margot Robbie pelada, a produção é mais um acerto para a carreira do diretor, cujo talento e capacidade continuam tinindo. Em determinado momento, Hanna fala que ninguém sabe nada de como as ações vão se comporta na bolsa de valores, mas uma coisa é certa: apostar em Scorsese é garantia de retorno.

Sobre um sorvete.

Eu nunca tinha reparado, mas colocar em um pote bolas de sorvete de sabores diferentes pode ser um fardo. Quer dizer, como se come um sorvete com essa configuração? Tipo, se for de chocolate e creme, existe alguma etiqueta sobre qual é o primeiro sabor a ser devorado? Devo dar preferência ao chocolate, porque ele parece ser a grande força dos doces mundo afora, o blockbuster dos sorvetes? Ou começo pelo de creme, assumindo uma postura mais alternativa e mostrando que não, eu não vou me render ao monopólio chocolateiro? Será que devo ir alternando, buscando na sobremesa um equilíbrio simbólico para o paradoxo da condição humana, onde tentamos ser todos diferentes mas iguais de certa forma? Mas nesse caso não pode acontecer que o chocolate, com uma base sólida formada por grandes corporações e anos de lavagem cerebral através de sua imposição em todas as sobremesas, consiga impor seu gosto sobre o outro? Ou o de creme ter cuidadosamente planejado essa imagem alternativa, essa abordagem desprendida do mainstream, justamente para usar gente como eu como massa de manobra em uma longa estratégia para sobrepujar o chocolate? Seria o de chocolate autêntico por incentivar o hedonismo com seu sabor inesquecível? Ou o de creme, claramente em desvantagem frente ao paladar, é uma lembrança de que os sabores verdadeiros da vida nunca te satisfazem completamente, deixando sempre uma abertura para percebermos que não existe perfeição entre o céu e a Terra? E seria eu, o agente de todas essas possibilidades, eternamente dividido entre chocolate e creme? Parte de mim deseja a fuga açucarada e a sobrecarga dos sentidos, enquanto a outra parte busca entender que a felicidade incompleta é o único caminho para a compreensão das nossas lutas e da nossa existência?

E será que eu, frente a tantas reflexões, deveria ter compreendido que, dadas as circunstâncias climáticas e as propriedades físicas do objeto, a merda do sorvete ia derreter enquanto eu ficava filosofando?

A problemática da porção.

Bares, restaurantes e outros recintos culinários mundo afora se aproveitam do fato de que, nessa realidade de temperos e acompanhamentos, há só uma unidade métrica para a quantidade de comida no prato: a porção. E ela está sempre presente. No happy hour, na janta, na entrada, na saída, no “beliscar alguma coisa”. O prato principal é o líder, é por ele que praticamos o capitalismo desenfreado, mas o dito-cujo é sempre seguido cegamente por diversas porções – arroz, pão, batata-frita -, que, juntas ou separadas, estão sempre gravitando em torno do prato principal (que provavelmente tem medo de ficar sozinho. É a versão alimentícia de uma tia tomando uísque com Red Bull).
O grande problema, claro, é que ninguém sabe exatamente quanto é uma porção. Não existe uma medida pré-definida. Tal qual a arte e os horários de ônibus em Porto Alegre, a porção é subjetiva. É uma unidade de medida que significa uma coisa para cada pessoa, depende do que essa pessoa acredita, existindo assim em um plano puramente espiritual e desprovido de evidências materiais – basicamente, é uma questão de fé (talvez a porção tenha surgido na repartição do pão na última ceia. Reflitam). O engajamento da sociedade em tal métrica inexistente é tão demente que inventaram até a meia porção, uma metade de algo que não se sabe o que é, cinquenta por cento do infinito, como alguém que dá direções dizendo “ah, claro, sim, isso fica logo ali passando o exato centro geográfico do universo”.
A conclusão inevitável é que a porção falha miseravelmente em sua empreitada métrica, servindo apenas como ornamento para as expressões pessoais que vão realmente definir o quanto foi servido (“é bem servido”, “vem pouco”, “dá pra duas pessoas”, “é tipo uma rave pra gordos”). Ainda existem aqueles que tentam encontrar alguma luz nessa escuridão, mas, data a já comentada subjetividade de coisa, acho que podemos aplicar aqui a lógica do copo: se a pessoa acha que uma porção é pouco, é pessimista; se acha que é bastante, é otimista.