Mais um paradoxo para a coleção.

Acho curioso que homens e máquinas estejam seguindo em caminhos inversos: os primeiros, para se diferenciarem, peneiram seus interesses até que uma área digna da especialização total e absoluta se destaque da lama, enquanto os segundos tentam chamar a atenção investindo justamente na abordagem multitarefa, embora esta tenha cansado de vitimar volantes/laterais brasileiros ao longo dos anos.

O lançamento do Xbox One, que não é o primeiro Xbox, nem o único, nem o Xbox do U2 ou Metallica, deixou isso bem claro. A Microsoft pretende tornar ele o “centro da sala de estar”, o que, além de provar que o aparelho é um grande adolescente carente feito de plástico e circuitos, indica que a próxima  geração de videogames deve vir com essa abordagem pau-pra-toda-obra (o próprio Playstation 4 deve seguir esse caminho, acredito, com a diferença de ter um controle menos ergonômico (= mais palha)). O negócio é que o Xbox deixa de ser apenas o videogame e vira também a TV, as redes sociais, o YouTube, o Instagram, o rádio (sei lá, né), enfim, a Microsoft basicamente pegou o conceito por trás de um filme do Eddie Murphy e aplicou no seu console.

Há muito já percebi que ouvir música no computador, celular ou até mesmo no mp3 player não é a mesma coisa que em um CD player. Não falo nem pela qualidade do som em si, mas sim pelo foco: só o que se pode fazer em um CD player é ouvir música. Não dá pra colocar Phoenix pra tocar enquanto joga Candy Crush. Não dá pra ouvir Foster and the People durante a postagem no Tumblr. É como se o CD player entendesse a importância que a música tem e não tentasse dividir ela com mais nada, obrigando o cara a ouvir e prestar atenção nas canções. Ele não foi feito para entreter ou divertir: foi feito para música.

Gosto desse comprometimento. Desculpe, Microsoft, mas para mim todos esses adendos não passam de chocarrices. Comprarei o Xbox One e o desconectarei de todas as contas e redes sociais e sei la mais o que, levarei o aparelho para uma caverna em Tombuctu e, uma  vez lá, obrigarei o videogame a realizar apenas a única função que os videogames devem realizar: irritar o jogador com simuladores de futebol.

O assassinato das expressões pelo covarde corporativismo

Percebo uma necessidade constante de corporativizar expressões. Palavras outrora legais como “experiência”, “conteúdo”, “produção”, “impacto”, “relevância” e mais algumas foram vítimas dessa epidemia tresloucada que sai por aí castrando as coisas de qualquer significado que não possa ser medido com estatísticas.

O que eu acho mais curioso é que as pessoas não se dão conta que tiraram a graça dessas expressões e acabam utilizando elas sem piedade nenhuma, apenas atirando cadáveres linguísticos ali na esperança de que o status deles frente ao mundo corporativo sobrepuje a completa falta de tesão do texto, um relato tão morto e vazio, tão cuidadosamente desinteressante, que parece quase uma vingança da própria gramática sua inevitável jornada rumo ao esquecimento completo.

Meu amigo eletrocardiograma

Não vou começar o texto dizendo que eu não gosto de hospitais porque, bem, sejamos sinceros, não há ninguém que goste de hospitais. Seria o mesmo que iniciar falando “lá estava eu, respirando, quando…”. Afinal, a melhor coisa que pode acontecer em um hospital é você sair de lá normal, zerado, exatamente como você estava antes de decidir que precisava ir ao hospital. Mas enfim. Ocorreu que a vida gentilmente solicitou que eu fosse até o hospital Mãe de Deus, fizesse o registro do meu RG na recepção para que tivessem meu controle de acesso caso eu quisesse sair de lá roubando, sei lá, novocaína?, tentasse passar o cartão de visitante no leitor errado da catraca, recebesse instruções efusivas do segurança, acertasse, subisse de elevador, travasse um diálogo cordial mas seco com pessas atrás de um balcão e fosse nominalmente chamado (“André Nique Costa”, mas pronunciando o “Nique” como se fosse “Nick”, por sei lá qual motivo. Deve ser coisa da nova ortografia) para realizar um exame de eletrocardiograma.
Foi um exame de rotina. Pelo menos foi assim que o médico e a técnica o definiram, já que, como eu nunca havia feito um antes, aquilo era tudo menos rotina, e eu sinceramente achei insensibilidade da parte deles assumir que eu achava aquilo rotina, como se me eletrocardiogramasse o tempo todo. Além do mais, palavras com cinco sílabas ou mais só podem ser engraçadas (“estapafúrdio”) ou intimidadoras (“eletrocardiograma”, “vulcanização”). Assim, foi com muita coragem nas veias que acompanhei a baixinha de cabelos encaracolados, jaleco branco e incisivas frases de protesto contra o sistema de tantas horas seguidas de trabalho.
Entramos em uma sala cujas paredes mal pintadas de azul me passavam a tranquila sensação de estar em um ambiente cirúrgico montado especialmente para que um médico pudesse tratar feridos do cartel de drogas mexicano. O que é obviamente um exagero, já que a sala era impecavelmente limpa e asséptica como todas as salas médicas e todos os médicos, mas a impressão inicial foi essa. Era pequena, também, sobrando pouco espaço além da poltrona desvirtuada* e do gabinete que sustentava o equipamento, uma máquina que, em aparência e personalidade, era idêntica ao HAL de 2001 (aqui pode ser que minha imaginação tenha pregado uma peça e fosse apenas algo semelhante a uma impressora (se bem que qualquer coisa relacionada a impressoras nunca é tranquila)). Logo após ouvir uma mulher pedir para que eu tirasse a camiseta pela primeira vez em meses, deitei na poltrona desvirtuada e fixei o olhar no duto de ventilação, porque de alguma forma isso pareceu aumentar a segurança. E a baixinha de cabelos encaracolados veio primeiro passando gel e depois prendendo coisas com ventosas nos meus braços e peito e eu só não fiquei com medo de uma mulher com chicote e roupa de couro entrar na sala porque a coisa toda tinha uma atmosfera meio Matrix, tipo naquele momento em que eles acordam no mundo real, e daí eu lembrei que a Trinity usava uma roupa de couro no filme e um grande insight Matrix-nerds-sadomasô-cardiologia começou a pipocar na cabeça.
O insight foi interrompido pela experiência, que, contrariando todas as expectativas, foi completamente indolor e desprovida de qualquer desconforto físico ou psicológico. Vesti a camiseta de novo ao som dos planos imediatos da baixinha de cabelos encaracolados para fazer algo a respeito do sono que a aflige por ter ficado até tarde celebrando o dia das mães, desejando a ela sorte na empreitada de conseguir um café. Saí sozinho pelo corredor, atravessei a porta, desci o elevador, depositei o cartão no lugar indicado da catraca e me dirigi para a saída, onde o paradoxo “chuva + sol” me fez perceber que o status quo da rotina havia se restaurado após o exame. Estamos no Kansas novamente.
Mas voltei ao local na mesma tarde, com a promessa de que os resultados já estariam disponíveis. Eu era o único cliente/paciente lá, então logo dei meu nome e um sujeito educado, aquela típica educação do outro lado do balcão, começou a remexer em alguns papéis para achar a análise do teste, em um movimento rápido de mãos que faria muitos dealers de cassinos corarem de inveja. Mas não parecia encontrar. Passava de lá pra cá, cá pra lá, trocava a ordem, perguntava meu nome de novo, nada. A coisa ficou nessa dança de celulose por um tempo até que um diferente sujeito-educado-do-outro-lado-do-balcão cordialmente abriu uma gaveta, encontrou cordialmente os resultados do exame dentro dela e me entregou de forma cordial. E eu saí aliviado, em parte por ter nas mãos o exame e, em parte, por ter me equivocado durante a cruzada para encontrar o papel certo: enquanto o homem do balcão lá jogava folhas de um lado para o outro, vi um papel com um círculo vermelho e um “D” enorme dentro dele e logo pensei “pronto, rodei no eletrocardiograma”.
*digo “desvirtuada” porque era uma daquelas poltronas edificantes, cujo habitat natural é a alguns metros de distância de uma televisão de oitenta polegadas, mas que aqui estava claramente sendo usada para propósitos inadequados.

Só no hipnotismo

Em Transe (Trance)
4/5

Direção: Danny Boyle
Roteiro: Joe Ahearne e John Hodge

Elenco
James McAvoy (Simon)
Rosario Dawson (Elizabeth)
Vincent Cassel (Franck)

Após cometer o vil e desprezível ato de roubar uma obra de arte, que só não é vil e desprezível quando é feito na internet, Simon sofre um daqueles ataques de “sujeito batendo na minha cabeça com uma arma” e esquece onde botou a dita-cuja. Mas os caras que pagarem ele pra roubarem a obra de arte (uma pintura, no caso) realmente querem saber onde ela está porque, sabe, eles pagaram pelo trabalho. Então levam Simon até uma moça que faz hipnose (uma hipnótica?), o que acaba desencadeando diversas sequências de de mistério, repletas de planos simbólicos e reviravoltas de reviravoltas de reviravoltas.
Em Transe possui uma trama entrecortada, que por vezes se passa na cabeça do protagonista, alterna espaços de tempo diferentes e outras coisas não-lineares. Pauta ideal para Danny Boyle, que curte uma narrativa mais rápida, frenética, uma narrativa com DDA algum desavisado poderia imaginar – entretanto, aqui ela funciona de forma inspirada, e Boyle conduz a película com um ritmo campeão. Ao menos até o final, quando é dada uma descarga em qualquer resquício de bom senso e a tentativa de surpreender o espectador de qualquer jeito pula para a lista de prioridades.

Vincent Cassel olhando para o roteiro do filme.

Mas vamos por partes, como diria um filme sendo transmitido na TV aberta. Aproveitando que temáticas envolvendo a mente abrem espaço para momentos onde a realidade não necessariamente é a realidade (embora normalmente seja), Danny Boyle investe em diversos recursos que criam uma atmosfera ligeiramente surreal, ainda que simultaneamente palpável (principalmente graças à fotografia escura, que sempre corre pra qualquer lugar onde tenha bastante preto): planos quadro-a-quadro (como stop-motion), camêra lenta, imagens desfocadas, transições fluidas (como a que vai do porão do bar para a casa de Simon), enquadramentos tortos e por aí vai. Além disso, os tradicionais planos curtos e a montagem ágil, que são tipo o RG do diretor, também dão uma mão nesse lance de surreal e etéreo e tudo isso mais que foi citado no parágrafo, pois se afastam diretamente de uma abordagem “realista”.
Só que Danny Boyle, claramente envergonhado por ter vencido o Oscar por Quem Quer Ser um Milionário?, vai além e investe em simbolismos que fazem rimas entre temas e elementos da trama de forma puramente vitoriosa – por exemplo, o constante excesso de luz vermelha remetendo ao sangue do que Simon fez, a cena do futebol repetida, as luzes flutuantes em diversos lugares. É um trabalho cuidadoso, que vai se tornando mais visível conforme a história vai evoluindo, conforme a cabeça de Simon fica mais completamente tresloucada e perigosa e desprovida de sentido. O diretor ainda AGATHACHRISTEIA tudo ao deixar a câmera com frequência atrás de vidros, realçando a ideia de que nada é o que parece, e cria algumas sequências marcantes (quando Elizabeth toca uma gravação, por exemplo, que o áudio é calmo e os personagens estão intensos, ou a inspirada transição da trilha para a música no carro).
Infelizmente o roteiro, apesar de manter as coisas interessantes e brincar um pouquinho com aquela coisa chamada psicologia e tal, se acha muito espertalhão e acaba dando com os burros nas soluções comuns e desprovidas de qualquer resquício de inspiração: não só o filme começa com a tradicional e explicativa narração em off (há uma verdadeira epidemia de narrações em off no início de filmes, e ela precisa ser contida antes que alguma novela da Globo adote o recurso e o estrague para sempre), como não tem vergonha nenhuma na cara ao apelar para o momento onde a única personagem que sabe toda a história narra a balbúrdia do início ao fim, explicando cada ponto, se bobar até com alguma maldita nota de rodapé em alguns momentos (também conhecido como “Efeito Vanilla Sky“) e, na tentativa de criar um final surpreendente, impactante, contrata um assassino profissional para dar cabo do bom senso – digo isso porque o desfecho torna tudo tão aleatório que a pessoa que realmente acreditar naquele planejamento é tipo a reencarnação da suspensão da descrença.
Mas ainda bem que a trilha atinge os pontos certos, sendo as vezes envolvente e as vezes mesclando-se com a ação em quadro (como o momento em que ela emula batidas de coração). Direção de arte e figurino também erguem as mãos em um high-five de sucesso (reparem como o figurino de Elizabeth sempre é monocromático e profissional), assim como o elenco: James McAvoy é carismático o suficiente para carregar o filme e, quando a cobra fuma, talentoso o suficiente para nos fazer acreditar que Simon realmente faz aquelas coisas; Rosario Dawson mantém movimentos contidos para dar a Elizabeth um ar sempre profissional, algo indispensável para levarmos a personagem a sério (e considerem que ela é uma hipnotizadora); e Vincent Cassel consegue ser ameaçador como Franck, ao mesmo tempo em que suas reações e entonações denotam a inteligência e até mesmo vulnerabilidade (até certo ponto) do sujeito.
Apesar de tudo, na maior parte do tempo Em Transe é envolvente e repleto de atrativos – com exceção de um ou outro tropeço que ele desce como cerveja no verão. Um belo esforço de Danny Boyle, que aqui utiliza seu talento e linguagem características (também conhecidos como TIQUES) a favor da história, e não o contrário. Pena que não gritou “corta” alguns segundos antes, evitando assim o desfecho embaraçoso, mas tudo bem, acontece. Não chega a hipnotizar a audiência, mas definitivamente prende a atenção.

Um serial killer chamado tecnologia

Parece que o grande denominador comum no surgimento de alguma nova tecnologia é o anúncio da imediata extinção da tecnologia anterior, como se o progresso fosse uma série de relacionamentos amorosos onde precisamos nos desligar do outro para aceitar o novo, isto é, um cenário bizarro onde a tecnologia aparentemente nos traiu enquanto estávamos no trabalho ou qualquer trauma assim e agora é necessário superar isso para aceitar o novo relacionamento (“existem muitos peixes com chips e placas eletrônicas no mar”). Assim, o CD veio para chutar a bunda do vinil, o mp3 chegou descendo o sarrafo no CD, o, sei lá, torrent? (Netflix?) surgiu jogando as dez pragas nas locadoras e cinema e, finalmente, Kindles e iPads aterrisaram no mundo para acabarem com os livros.
É claro que a convivência pacífica entre tecnologias atuais e passadas é algo fora de cogitação, uma aberração inominável que jamais passaria pela cabeça de qualquer pessoa decente, qualquer pessoa de bem, que tenha uma família respeitável e um emprego digno (oito às dezoito). Quem cogita essa possibilidade são apenas os retrógrados, presos no passado por alguma loucura e inevitavelmente, cedo ou tarde, deixados à própria sorte por não se adaptarem. A lógica deles é complexa, os verbos deles conflitam com o nosso – o progresso acontece para que a gente possa usar ele, não refletir sobre ele.