Jogos, trapaças e um barbudo viajante.

A Hora Mais Escura (Zero Dark Thirty)
5/5

Direção: Kathry Bigelow
Roteiro: Mark Boal

Elenco
Jessica Chastain (Maya)
Jason Clarke (Dan)
Kyle Chandler (Joseph Bradley)
Jennifer Ehle (Jessica)

Após Bin Laden brincar de desmontar Lego com o World Trade Center e o Pentágono, uma equipe da CIA se arranca em uma caçada impiedosa ao barbudo. Maya, uma agente nova, chega já no início da fuzarca e, entre torturas e fracassos e pressões políticas e egos e ambições frustradas e solidão, passa 10 anos envolvida nessa caçada – mas será que, mesmo com o objetivo alcançado, é um final feliz?
Kathryn Bigelow já provou que é uma moça política. Enquanto seu ex-marido James Cameron sai por aí criando mundos, ela quer desvendar os significados deste mundo – algo que o brilhante Guerra ao Terror fez ao olhar para a vida dos desarmadores de bomba. E, neste A Hora Mais Escura, ela consegue mostrar não só a abrangência da caçada ao Bin Laden, mas o quanto ela significa, o quanto foi investido nisso (tanto no plano material quanto no psicológico), o quanto se ultrapassou a linha do aceitável, e por aí vai. É um olhar desmistificado, sem glória, sem patriotismo, mas com força suficiente para mandar o espectador para casa pensando no assunto.

Por exemplo, o filme aborda com pertinência a questão das armas nas filas dos banheiros.

O filme já começa intenso com uma cena de tortura que, sem ser exagerada ou gráfica em excesso, chega naquele status onde dá uma rasteira no espectador e fica socando a cara dele. É completamente impossível não se enternecer de forma definitiva ao ver um torturado soltar uma lágrima involuntária quando bebe um gole de água. De certa forma, ela define o sentimento americano pós 11/9: raiva, busca desenfreada por informações, tentativa de ganhar vantagem na força, vingança. E é emblemático que a novata Maya, claramente inconfortável assistindo a tudo (embora mostre personalidade ao decidir não usar a máscara), mais tarde passe ela mesma a realizar tais atividades com naturalidade. Essa caçada ao Bin Laden, na verdade, é uma guerra contra um homem só.
Mas Bigelow foge do maniqueísmo como Tom Hooper do bom senso, e a galera aqui não é um bando de torturadores malignos que tiram doces de crianças em seus momentos de folga: acompanhamos o esforço daquelas pessoas fazendo seu trabalho – esforço que, em caso de erro, pode resultar na morte de centenas de pessoas (como mostram os atentados) ou até mesmo de amigos (como na reunião com o médico). Até mesmo uma investida correta pode resultar em frustração: o número de dias que uma pista de Maya fica sem ser investigada por questões políticas, a tentativa de assassinato dela, os protestos, e por aí vai. Afinal, encontrar uma pessoa em um mundo enorme, uma pessoa que manja do riscado e sabe se esconder, é um trabalho descomunal.
Ainda que a quantidade absurda de informações não permita um maior aprofundamento nas personagens, é interessante ver alguns detalhes tipo Maya repetindo as falas de Dan, ou este desabafando que vai voltar para Washington porque precisa “fazer alguma coisa normal”, ou até mesmo o momento em que Maya e Jessica quase são mortas em uma explosão de bomba durante um jantar, mostrando que lá a cobra fuma o tempo todo (“não coma fora, é perigoso”, diz Maya a certa altura). O roteiro não se prende a convenções (ok, na maior parte) e prefere tratar as personagens como pessoas mesmo, que conversam sobre coisas rotineiras durante o trabalho, mesmo que o trabalho envolve alguma explosão ou tiroteio alucinado. Além disso, podemos ver situações que fazem jus ao “inteligência” na sigla da agência, como o momento onde descobrem que alguém está se escondendo em uma casa justamente pela ausência de rastros dessa pessoa lá ou o fato de que Maya usa uma peruca morena em alguns interrogatórios para não destoar tanto do interrogado e tentar estabelecer alguma identificação. Malandro esse pessoal da CIA.
Bigelow documenta tudo com a câmera na mão, em uma montagem agitada feito sábado à noite, mas sempre clara sobre o que está acontecendo (é um estilo documental que funciona bastante nesse tipo de produção). Junto com as ótimas fotografia e direção de arte (que passam uma atmosfera suja, árida, um clima de salão de festas no início da manhã após um churrasco de noite), a produção mantém um ritmo bastante enérgico (e essencial para as quase três horas de filme), tornando os acontecimentos em cena sempre interessantes. O ápice ocorre na invasão final: tensa a ponto de fazer uma disputa por pênaltis parecer um episódio dos Ursinhos Carinhosos, a sequência, que alterna entre a visão noturna em primeira pessoa dos soldados e a linguagem usada até ali, certamente desencadeará muitas gastrites nervosas na platéia. Completamente desprovida de trilha, essa cena é de uma intensidade assustadora – que provém não só da cena em si, mas também de tudo que sabemos daquela casa, prova de que houve uma cuidadosa construção do suspense (só a geografia da sequência que é meio confusa e poderia ser melhor estabelecida. Até entendo que geografia é chato, mas enfim, faz parte).
A Hora Mais Escura se beneficia ainda de um elenco homogêneo, que compõem suas personagens com carisma e eficiência apesar do pouco tempo de cena e da falta de aprofundamento (por exemplo, Jason Clarke consegue tornar Dan ao mesmo tempo amigável e ameaçador, sem recorrer a caricaturas). Mas quem carrega a balbúrdia mesmo é Jessica Chastain, que cresce junto com a sua personagem (reparem como a postura contida dela na primeira cena dá lugar a uma outra completamente desenvolta conforme ela ganha confiança, até mesmo desafiando superiores), tornando Maya obcecada com suas pistas e com o trabalho que tem pela frente – e a expressão de resignação que ela faz quando diz “eu não fiz mais nada” (uma daquelas belas frases de duplo sentido do cinema) é quase dolorosa. Chastain consegue trazer humanidade, ambiguidade, raiva (“vou detonar todos os envolvidos neste atentado”) e determinação para a personagem, carregando a história com facilidade.
Trazendo diálogos épicos do tipo “Tragam gente para matarmos!”, A Hora Mais Escura peca um pouco apenas por não se aprofundar mais nos dramas e histórias de suas personagens, tornando o arco dramático da protagonista um tanto superficial. Ainda assim, é uma obra poderosa, com um clímax envolvente e impacta o público sem piedade nenhuma. Uma granada em película, pode-se dizer. Porque, quer seja a tortura, os gastos, a violência ou a dúvida se tudo valeu a pena, A Hora Mais Escura levanta pontos importantes sem medo, contrariando seu título e abrindo um pouquinho de luz em cada assunto.

Sem licença para dirigir

Os Miseráveis (Les Miserables)
2/5

Direção(?): Tom Hooper
Roteiro: William Nicholson, Herbert Kretzmer, Alain Boublil e Claude-Michel Schönberg, baseados no musical dos dois últimos, que por sua vez é baseado no livro de Victor Hugo.

Elenco
Hugh Jackman (Jean Valjean)
Anne Hathaway (Fantine)
Russel Crowe (Javert)
Helena Bonham Carter (Madame Thénardier)
Sacha Baron Cohen (Thénardier)
Eddie Redmayne (Marius)
Amanda Seyfried (Cosette)
Samantha Barks (Épopine)

Na França do século XIX, Jean Valjean, preso por uma ação solidária, sofre. Do outro lado, Fantine, mãe solteira que precisa de trabalho, sofre para alimentar a filha. Javert, MEGANHA que caça endemoniado os bandidos, também sofre. Então Valjean, agora bem de vida, sofre pra ajudar a filha da Fantine. Daí todo mundo sofre junto, enquanto a revolução francesa aumenta o sofrimento geral e Tom Hooper aniquila a galera com o sofrimento definitivo.
Se for parar pra pensar, Os Miseráveis trata de um ladrão que repensa sua vida, uma mãe ajudando a filha e um inspetor policial com questionamentos éticos. Tinha tudo pra ser um daqueles dramas envolventes, que, ao final, fazem o cara repensar sua vida até chegar à primeira loja do shopping. Entretanto, com um roteiro unidimensional, ótimo elenco desperdiçado e uma direção que deveria no mínimo credenciar Tom Hooper ao bafômetro, a película acaba se tornando uma besteirada superficial, sem graça, sem profundidade, que desperdiça alguns bons números musicais em uma obra tão despida de sentido que seu título de trabalho, durante as filmagens, deve ter sido “CAOS”.

“Vou querer um travelling, e… oh sim, e uma lente olho-de-peixe junto, é claro.”

O filme até começa bem, com uma sequência bacana onde a galera fica a puxa navios (literalmente) e cantar uma das músicas mais legais do filme (o que contradiz a ideia de que só as pessoas felizes cantam). A partir daí, entretanto, Os Miseráveis faz o oposto dos navios puxados pelos sujeitos e vai afundando aos poucos, subjugado por dramas superficiais e pouco desenvolvidos – tipo, parece que cada personagem está ali para executar apenas uma função: Valjant quer fazer o bem para espiar seu passado tinhoso, Fantine quer ajudar a filha a qualquer custo, Thénardier e Madame Thénardier querem colocar o carimbo definitivo de que o filme não faz sentido nenhum, Marius é aquele cara com paixonite obcecada e piegas e Cosette fica só na lacrimejância total pelos cantos. Assim, não há identificação do espectador com a galera, não há envolvimento, tudo acontece sem antecipação dramática e de forma súbita (por exemplo, o tempo que Cosette e Valjean ficam separados é muito curto para tamanho dramalhão no reecontro. Foi uma cena de distância! Só uma! Nem eu tinha saudade do Valjean ainda).
Os únicos que conseguem adicionar um pouco de profundidade a essa grande piscina de crianças que é Os Miseráveis são Javert, com sua obstinação conflitante pela lei e os desdobramentos da história, e Épopine, que, apesar do tempo curtíssimo em cena, se torna a personagem mais sensível, a mais tridimensional, a melhor atuação e a melhor cintura da película. Mas são momentos mais isolados, que não conseguem fazer frente à falta de sentido do roteiro, como a rapidez com que Fantine cai em desgraça (imaginem um filme do Iñarritu só com as cenas mais desoladoras) ou a comoção forçada na morte da Épopine. Já os números musicais são bem instáveis: alguns funcionam muito bem, normalmente aqueles que envolvem mais pessoas e vozes para interpretar as belas canções (como na citada cena inicial, onde o ato de puxar a corda vira quase uma coreografia de dança), e outros que praticam bullying com os tímpanos alheios – principalmente os diálogos, abre aspas, cantados, fecha aspas, que, desajeitados, mal ensaiados e aparentemente fruto do mais poderoso vício em crack, mal e mal passam como diálogos, que dirá canções.
Mas a casa beija o chão mesmo graças a Tom Hooper. Mantendo a mesma postura tresloucada que quase botou O Discurso do Rei abaixo, o diretor chega atirando falta de lógica pra tudo que é lado: primeiro enquadra suas personagens no canto, depois no centro, usa enquadramentos tortos no meio de diálogos, enfim, é basicamente um poutporri de recursos cinematográficos. Hooper insiste em um primeiríssimo plano incômodo, que joga pelo ralo o (excelente) trabalho da direção de arte, e volta e meia utiliza profundidade de campo curta porque ei, as pessoas vão olhar e dizer “olha que legal, tá desfocado!” e vai ficar tudo muito bonito no Vimeo. Além disso, Tom Hooper parece ter um acordo de merchandising secreto com uma determinada espécie aquática, pois atira na história duas ou três lentes olhos de peixe cuja distância da palavra “sentido” oblitera todas as métricas espaciais já concebidas pelo homem. Até mesmo quando tenta chamar na subjetividade o sujeito dá com os burros na água, como no extremamente explícito (e extremamente desajeitado) plano onde Javert se posiciona à frente de uma enorme estátua de uma águia. A direção do sujeito é tipo um Royal Straight Flush de derrota.
Considerando tudo isso, logo se percebe que o elenco precisa tirar água de roteiro unidimensional – e o mais incrível é que a maioria consegue, erguendo o filme um pouco do lamaçal: Hugh Jackman confere intensidade e vida a Valjean, conseguindo fornecer uma carga de dramaticidade às cenas envolvendo o ex-ladrão; Anne Hathaway dá a Fantine a fragilidade que o roteiro não consegue construir, além se entregar por completo mas sem exageros em “I Dreamed a Dream“, a melhor e mais envolvente cena do musical; e Russel Crowe, ainda que de longe seja a pior voz do elenco (pelo menos fica claro que ele não usou Pro-Tools), chama na competência habitual e constrói a tragédia de Javert através de gestos minimalistas, contidos, que ilustram a incerteza moral da personagem. O resto da galerinha, com o tempo de cena quase transformado em um tweet, pouco pode fazer – embora fosse melhor se os caricaturais Sacha Baron Cohen e Helena Bonham Carter não tivessem feito nada, e passassem o tempo no trailer brincando daquele famoso jogo de tabuleiro “Vamos Destoar do Clima do Filme” ao invés de aparecer no set. Ainda assim, Samantha Barks merece destaque por toda a tristeza e tridimensionalidade de Épopine, ilustrada em expressões de admiração e decepção que são tocantes (há uma intensidade nos trejeitos dela, como o leve franzir de sobrancelhas, que dá força à história mas fica longe da dramaticidade artificial), tornando-se o grande destaque do projeto.
Embora a direção de arte suja, repleta de cenários desorganizados e tortos (cuja reconstituição de época é sensacional) e os arranjos musicais funcionem bem, a película continua a receber fracasso por parte de sua montagem videoclíptica, repleta de cortes desnecessários, que torna a coisa toda bem cansativa. No geral, Os Miseráveis é uma experiência burocrática, pouco inspirada, que busca a grandiosidade em momentos pontuais e mesmo assim erra o alvo (a quantidade de vezes que o filme afasta a câmera da personagem usando a grua, no final de um número musical, é desconcertante). Comandada pela versão hollywoodiana daquele tio que  vende cachorro-quente com tudo dentro, a produção é uma bagunça que faz muito quarto de adolescente parecer o do Howard Hughes, e, como os números musicais foram gravados no set, a impressão é que Tom Hooper quis desafiar aquela famosa expressão que diz “quem sabe faz ao vivo”.

For the land of the cheesy…

Lincoln
2/5

Direção: Steven Spielberg
Roteiro: Tony Kushner, baseado em livro de Doris Kearns Goodwin.

Elenco
Daniel Day-Lewis (Abraham Lincoln)
Sally Field (Mary Todd Lincoln)
Tommy Lee Jones (Thaddeus Stevens)
Negros esperando que um branco os salve

Estamos nos Estados Unidos, no ano de mil oitocentos e é hora de ganhar outro Oscar. A Guerra Civil e a escravidão tornam os americanos mais divididos do que os gaúchos. Eis que o presidente SuperLincoln Lincoln resolve aprovar a décima terceira emenda, terminando o namorico com a escravidão. Mas, como só acabar com centenas de anos de escravidão não é o suficiente, ele precisa fazer isso sozinho, contra tudo e todos, sacrificando tempo com a família, sendo lembrado toda hora que não vai conseguir e lutando contra vampiros no meio do caminho (ok, eu posso ter inventado essa última. Ou outra pessoa pode ter inventado. Mas não seria tão destoante aqui).
Spielberg é um diretor talentoso pacas, que, embora sempre tivesse uma queda pelo piegas (como assim, final de Minority Report?!), com frequência conseguia se controlar e criar obras extremamente eficientes e envolventes (não é qualquer um que vai da trilogia Indiana Jones ao poderoso Munique). Entretanto, a verdadeira Bomba H contra diabéticos que foi Cavalo de Guerra parece ter se agarrado ao velho tio Steven, que, neste medíocre Lincoln, repete a artificialidade dramática e os clichês e a falta de desenvolvimento e, bem, a pieguice total para tentar fazer o público chorar.

Lincoln desolado após ler o roteiro do filme.

A não ser, claro, que o objetivo de Spielberg tenha sido mostrar em duas horas e meia como Lincoln é uma personagem icônica – nesse caso, não há como dizer que o diretor não se esforçou, já que fotografa ele de costas, de perfil, contraluz, levantando-se da cadeira de forma imponente (cerca de oito ou nove vezes durante o longa), enfim, utiliza todos os recursos iconicamente disponíveis. Aliás, o Lincoln de Spielberg é menos uma personagem e mais uma fonte de sabedoria definitiva sobre todas as questões mundanas. Por exemplo, toda vez que alguém pergunta algo, Lincoln não apenas responde; ele inicia com uma fábula sobre a situação e que ilustrará perfeitamente sua opinião sobre o assunto. Mas não há uma tridimensionalidade em cima do presidente, que parece apenas uma força da natureza destinada a encerrar a escrevidão e a guerra, e até mesmo diálogos que tentam conferir uma certa “complexidade” a ele, como aquele onde a esposa diz “você sempre culpou Robert por ter nascido”, surgem de forma súbita, sem antecipação nenhuma e tão artificiais quanto suco de saquinho.
Os diálogos do filme, a propósito, entraram no comportamento atual das redes sociais e se tornaram exibicionistas ao extremo, tentando expor de forma embaraçosa sentimentos e situações para que a história não precise perder tempo com isso – e, nesse tópico, Lincoln tenta martelar de forma inexplicável na cabeça do espectador como a situação é complicada para o presidente: diálogos como “nenhum presidente teve essa popularidade” ou “é impossível” ou “é a paz ou a emenda, você não pode ter ambas” ou “nós vamos perder tudo” pipocam a torto e a direito, como se a película acreditasse que sua audiência é formada apenas pela personagem de Guy Pearce em Amnésia. Isso torna a produção cada vez mais repetitiva e menos envolvente, ainda mais se somada ao fato de que a história apela para os tradicionais clichês Hollywoodianos e novelescos (o adversário é uma pessoa mesquinha, arrogante, praticamente um vilão; há o elemento que heroicamente muda de ideia na última hora; o drama do filho negligenciado surge apenas para criar mais um obstáculo e mostrar como Lincoln é altruísta; as regras são quebradas em prol dos negros no clímax para criar um momento mais edificante; e por aí vai) na busca pelas lágrimas, mas tudo que consegue é a incredulidade de que profissionais experientes realmente apelaram para aquilo.
Diretor talentoso e que manja do riscado, Spielberg cria enquadramentos elegantes e bonitos (como todos os icônicos já citados), mas, tal qual um funcionário público, não vai além do que o mínimo para contar a história (lembro que até o Spielberg de Guerra dos Mundos era mais elaborado e sagaz). A direção de arte, por outro lado, chama no anabolizante total na fenomenal reconstituição de época, além de manter o figurino adequadamente sóbrio (algo que a fotografia realça através da utilização constante de sombras e de cores dessaturadas). É uma pena que John Williams, provavelmente ainda sob efeito dos mesmos alucinógenos que usou em Cavalo de Guerra, insiste em uma trilha que amarra o espectador na cadeira e aponta uma arma pra ele e diz pra ele o que sentir, pulando daquele lance engraçadinho que poderia estar em um filme da Disney até a dramaticidade absoluta, que só falta chorar pelas caixas de som do cinema. A falta de sutileza do filme se reflete também em sua trilha.
Ainda bem que Daniel Day-Lewis, esse camisa 10 elegante, essa Budweiser no meio de Heinekens, esse herói das multidões, pega o papel de Lincoln e despeja vitória ao longo da projeção. Carismático ao extremo, o ator investe em uma abordagem minimalista, construindo o presidente através de um tom de voz sereno, calmo, e uma postura ligeiramente curvada, como se estivesse com o peso do mundo nos ombros. Day-Lewis consegue fazer de Lincoln uma figura sólida e ao mesmo tempo cansada, o que se torna ainda mais impressionante pelo fato de que o roteiro não tenta fazer isso e só quer ficar cuidando pra ver quando alguém vai chorar. Completamente adaptado ao papel, cabe a ele conduzir o público pelas tramóias da película, realizando isso com sucesso apesar dos percalços ao redor – percalços que incluem a novelesca, artificial, crackeada atuação de Sally Field, que a todo momento utiliza trejeitos e gestos ensaiados na busca de uma intensidade que nunca vem e cuja indicação ao Oscar representa uma derrota na história da humanidade. Ao menos Tommy Lee Jones se propõe a tommyleejonesear e dá um pouco de vida a Thaddeus, apesar da forma unidimensional e estereotipada com que o roteiro trata sua personagem.
Tirando a cartinha “Revés” do Banco Imobiliário tanto como registro histórico quanto (e principalmente) como estudo de personagem, Lincoln parece querer provar a teoria de que as pessoas vão se tornando mais piegas conforme envelhecem. É um esforço preguiçoso e sem inspiração, que surpreende ainda mais por vir de um diretor tão acostumado a criar obras memoráveis. Assim, Spielberg entra no time dos que são escolhidos por último pela segunda vez consecutiva, o que nos deixa pensando: será esta apenas uma fase ruim? Ou será que o velho Steve, ao contrário do presidente que retrata neste filme, decidiu simplesmente seguir pelos caminhos mais fáceis?

Convenção e sensibilidade

O Lado Bom da Vida (Silver Linings Playbook)
4/5

Direção: David O. Russel
Roteiro: David O. Russel, baseado em livro de Matthew Quick

Elenco
Bradley Cooper (Pat)
Jennifer Lawrence (Tiffany)
Robert De Niro (Pat Sr.)
Jacki Weaver (Dolores)

Pat é um sujeito bipolar que, após oito meses naquele banquinho do castigo chamado “manicômio”, volta pra casa com o sonho de retomar o namorico com sua esposa Nikki. Daí o cara, entre um pai supersticioso e uma mãe carinhosa e um amigo com problemas matrimoniais e uma viúva chamada Tiffany que com frequência chuta o balde do bom senso, precisa retomar seu caminho, trabalhando para que sua doença nunca mais faça bullying com sua vida novamente.
O Lado Bom da Vida é um daqueles filmes incrivelmente envolventes, com personagens tão cativantes que dá vontade de procurar e adicionar elas no Facebook, onde a história gira mais ao redor deles do que de eventos (provando que o adesivo de para-choque é verdadeiro e o importante mesmo é a jornada). Uma música do Coldplay em película, em resumo. Infelizmente, nem tudo na vida é pizza gelada quando o cara chega em casa da festa, e o filme acaba repetindo alguns dos erros vistos em O Vencedor, filme anterior do David O. Russel, como os dramas súbitos e os diálogos expositivos.

Mas tem a Jennifer Lawrence.

Tudo isso é resultado de um trabalho bem cuidadoso com as personagens. Desde o início o diretor coloca suas câmeras perto, bem perto, quase encoxando os atores, utilizando diversos planos fechados para realmente levar o público para dentro delas, fazer com que sejam compreendidas. Uma linguagem que, com a montagem bastante frenética e a câmera na mão, ilustra bem todo o furacão que vive dentro daquelas pessoas (aliás, percebam como a câmera frequentemente fica inquieta perto de Pat). É um trabalho bem cuidadoso, centrado, que torna Pat (e, mais tarde, Tiffany) realmente o centro da história: o objetivo aqui não é tanto o que acontece com ele, mas sim acompanhar a forma com a qual ele lida com os acontecimentos. Da mesma forma, Tiffany (também sempre fotografada de perto), a princípio parecendo apenas uma daquelas minas estranhas que serão publicadas ad eternum em tumblrs hipsters (perdão pela redundância), se torna tão tridimensional quanto Pat, ao mesmo tempo doce e intensa, solidária e egoísta, alegre e melancólica. É na química única entre essas duas personagens (e os atores, óbvio), a forma tocante com que acabam se encontrando uma na outra – seja no contato físico através da dança (que vai gradualmente crescendo), nas discussões e choros em momentos-chave ou apenas no fato de que eles parecem se sentir bem juntos, com momentos divertidos e tiradas engraçadas (“sua agenda está cheia?”) extremamente naturais – que carrega O Lado Bom da Vida até aquele status que faz o espectador levantar da poltrona e ir correndo abraçar a tela de cinema (não fiz isso, mas só porque sou muito tímido).
Além disso, o roteiro consegue criar algumas sutilezas realmente inspiradas, como iniciar com Pat dizendo que domingo é seu dia favorito (o que já o qualifica como diferente do resto e faz uma rima supimpa com o final), consertando a janela quando finalmente decide arrumar sua vida e Pat Sr. insistindo para que o filho assista ao jogo com ele dizendo que é por superstição, quando na verdade só quer mesmo passar um tempo com o rapaz – sutileza que, infelizmente, logo o filme desmantela ao fazer com que Pat Sr. explicite essa situação em um diálogo embaraçoso. Aliás, O Lado Bom da Vida só não atinge níveis romarísticos de vitória porque tem acessos de esquizofrenia onde pensa que é uma comédia romântica: situações como a cena do “dobro ou nada”, ou a narração do trauma de Pat para o terapeuta, ou aquela no bar onde Tiffany solta uma frase cruel sem significado nenhum e que é rapidamente esquecida apenas para forçar um drama, ou o momento absurdo onde, após um casal de dançarinos ter tirado várias notas 4 (de 10), alguém fala “vocês tiraram vários 4, isso não é bom”, como se a ordem numérica fosse tão misteriosa e complexa quanto física nuclear, são extremamente forçados e explícitos e soam apenas como uma triste vitória dos convencionalismos hollywoodianos sobre uma visão sincera da história. São momentos que quebram toda a construção feita até ali, soando deslocados e, assim, tirando o espectador do filme. Diabos, há até um beijo com travelling circular, algo inimaginável fora de qualquer filme estrelado pela Katherine Heigl ou dirigido pelo Michael Bay.
Contando com uma direção extremamente sensível por parte de David O. Russel, que, através da câmera na mão e dos já citados enquadramentos fechados, mostra um afeto tocante por aquelas personagens (além dos tons pastéis dessaturados, que são tipo obrigação em filmes “indies” (embora funcionem aqui)), tornando O Lado Bom da Vida cativante pacas, uma versão em película de uma foto de um cachorrinho deitado dentro de uma pantufa. Claro que nada disso funcionaria sem um elenco completamente em chamas, e aqui temos Robert De Niro conferindo personalidade e uma dramaticidade quase trágica a Pat Sr., enquanto Jacki Weaver consegue simular todo o carinho e preocupação de uma mãe.
Mas o destaque, sem dúvida, vai para a dupla de protagonistas: completamente alucinado, inquieto, com trejeitos frenéticos e um ótimo timing cômico, Bradley Cooper surpreende a todos de forma shyamalanesca e torna Pat alguém quase hipnotizante, carismático ao extremo e que carrega o filme com facilidade. Sua presença em cena é sempre muito forte, até mesmo os extremos entre a serenidade otimista e a explosão de raiva o ator tira de letra. Do outro lado, Jennifer Lawrence comprova seu talento ao construir a complexa Tiffany através de olhares e inflexões extremamente sutis e econômicos, trazendo a sensibilidade da moçoila à tona através de uma vulnerabilidade quase invisível e, ao mesmo tempo, impossível de não ser vista. A atriz transita entre o doce e o intenso sem caricaturas ou dramaticidade exagerada, tornando cada pequeno detalhe, cada alteração, ainda mais repleto de significado. Além disso, ela tem um olhar de decepção, de desolação, tão poderoso mesmo em seu minimalismo que dá pra literalmente ouvir todos os corações do público se estilhaçando durante a cena.
Assim, O Lado Bom da Vida se torna um retrato dessas duas personagens, testemunhando seu retorno ao cotidiano após um evento traumático. Apesar dos eventuais deslizes, é uma daquelas produções envolventes o suficiente para fazer com que o espectador se importe com Pat e Tiffany e todos os outros, torça por eles, comemore quando algo de bom aconteça ou quando a Jennifer Lawrence aparece de barriga de fora. Tipo de película que não se vê com muita frequência, mas que é sempre bem vinda. No meio de tantos dramas rasos e superficiais, o filme da David O. Russel mostra que, como a vida, Hollywood também tem um lado bom.

The Good, the Bad and the Nigga

Django Livre (Django Unchained)
5/5

Direção: Quentin Tarantino
Roteiro: Quentin Tarantino

Elenco
Jamie Foxx (Django)
Christoph Waltz (Dr. King Schultz)
Leonardo DiCaprio (Calvin Candie)
Samuel L. Jackson (Stephen)

Dois anos antes da Guerra Civil americana abrir a porta e entrar sem ser convidada, uma curiosa parceria se forma quando Dr. King, um alemão dentista e caçador de recompensas, liberta Django, um escravo, pois precisa da ajuda dele para reconhecer alguns malfeitores (claro que o nome “Dr. King” é pura coincidência, né). Mas logo ele descobre que tinha essa mina escrava que Django dava uns pegas e ambos partem com a missão de resgatá-la das garras do laquê no cabelo de Calvin Candie.
Tarantino é um sujeito excêntrico. Isso provavelmente não deve ser novidade para quem sabe da obsessão dele pelo dedão torto da Uma Thurman ou para quem já viu ao menos uma foto do sujeito. Mas a verdade é que essa excentricidade se reflete em seus filmes: mesmo em obras de gênero (tipo Kill Bill), ele confere um tom pessoal e subverte as tradições do gênero em questão. E Django Livre, um faroeste estrelado por um negro, com mais diálogos que ação, mensagem social e cuja única personagem não-racista é um alemão, não poderia definir melhor a peculiaridade do diretor.

“A iluminação está boa, mas falta dedão.”

Não que isso seja algo ruim, já que Django Livre se mostra uma das produções mais redondas e alucinadas do ano. Começando já pelos créditos iniciais, que simulam os letterings da época do faroeste spaghetti , Tarantino parece estar se divertindo à beça o tempo todo, abusa dos zooms e closes, planos-detalhe, pistoleiros com a mão no revólver, fotografia estourada e granulada nos flashbacks (emulando os faroestes antigos), letterings estilizados surgindo de forma abrupta. Longe de parecer exagerados, entretanto, os recursos entram de forma orgânica na narrativa, quer construindo a tensão na cena (os planos-detalhe onde a galerinha vê que a cobra pode fumar e já vai tirando o BERRO do coldre) ou subvertendo a expectativa do faroeste (em certo momento, Tarantino usa o clássico close nos olhos de Sergio Leone, mas, ao invés de um olhar duro, encontramos uma lágrima). O controle que o diretor tem sobre a linguagem é digno de uma mulher ciumenta, e, mesmo que seus recursos cinematográficos eventualmente chamem atenção para si mesmos, eles jamais interferem na fluidez da história.
Além disso, Django Livre também traz a tradicional sanguinolência desenfreada do diretor, quase estilizada e com uma veia humorística muito forte (trocadilho obrigatório). Ela permeia todo o filme, mas atinge níveis durodematarzísticos no tiroteio na mansão, coreografado de forma brilhante, intensa e engraçada – Tarantino estabelece bem a geografia do lugar, mostrando com clareza onde cada pistoleiro está, e depois faz um bom trabalho despejando cachoeiras de sangue em cima dessa geografia e saindo por aí pra comemorar com cerveja e dedões femininos. Aliás, por falar em tiroteios, a rapidez de Django e do Dr. King no gatilho é me visualizada através de planos únicos, o que torna o descimento de sarrafo deles no resto da galeria ainda mais crível. Se bem que com a espetacular trilha que polvilha a película, trazendo temas de Enio Morricone (= versões em áudio de bolas de feno cruzando o deserto) misturados a outras batidas que remetem mais ao cinema negro americano da década de 70 (já que Django Livre de certa forma fala da ascensão de negros), naquele estilo tarantinesco onde elas não parecem ideais para o momento mas acabam se encaixando com perfeição, já eleva cada disparo de pistola àquele nível do cara erguer os braços e gritar “é isso aí!”.
Como de costume, o roteiro também merece destaque, a começar pelo Dr. King, a antítese de tudo que se espera de uma personagem faroéstica: educado, inteligente e com um vocabulário mais afiado do que língua de mulher, ele cativa o espectador desde a primeira cena com tiradas sensacionais (“você me deve 200 dólares”) e a contradição entre seus modos e a brutalidade ao redor. Estão lá também as personagens marcantes, com nomes como “Calvin Candie”, que se destacam por tomar decisões e ações contrárias à expectativa do público (a sequência da cena do crânio, por exemplo); e os diálogos elaborados, bem desenvolvidos, que dão voltas em torno do assunto com uma dinâmica invejável – e, nesse caso, é impossível não citar a descomunal sequência com a Ku Klux Klan, uma das mais engraçadas que Tarantino criou até hoje.
Mas também há algo novo aqui, uma  vez que algumas falas são carregadas de significado de uma forma que o diretor/roteirista queixudo jamais havia feito. Exemplos: Django falando “estou mais acostumado aos americanos do que eles”, ao ver uma cena de pura maldade e violência; o contraste absurdo entre polidez da frase e a ação que ela origina quando Calvin fala, se referindo a enviar uma escrava para satisfazer um convidado, “a hospitalidade sulina me obriga a disponibilizá-la”; e o momento onde uma personagem diz a outra que castração não é castigo o suficiente e vai vendê-la para uma companhia mineradora, deixando bem claro que até mesmo a situação “legalizada” dos escravos era ruim o suficiente a ponto de ser pior do que perder as bolas.
Atuando na pele do protagonista, Jamie Foxx acertadamente mantém sempre uma expressão sisuda, tensa, do tipo que parece que vai enfiar alguma coisa no rabo de alguém a qualquer momento. Sua própria postura é mais dura, e o ator dispara cada frase como se fosse um tiro de revólver, criando assim um Django extremamente imprevisível e intimidador – um forte oponente para o Stephen interpretado por Samuel L. Jackson, que, embora já na melhor idade, mostra sua força e desprezo com tamanha intensidade que dá vontade de pedir para acenderem as luzes do cinema. Já Leonardo DiCaprio, embora ilustre bem as sensações pelas quais Calvin passa (alegria, raiva, frustração, etc), continua com sua tendência a exagerar na dramaticidade dos trejeitos e falas, tornando a presença do sujeito um tanto artificial por vezes. Mas não faz diferença, porque Christoph Waltz chega chutando a bunda de todo mundo com seu timing cômico definitivo, tornando o verborrágico Dr. King carismático ao extremo. É incrível como o filme ganha vida e naturalidade quando ele está em cena, com seus trejeitos mais floreados e a mania de ficar alisando o bigode. Waltz, meu amigo, passe a vida toda interpretando alemães poliglotas em filmes do Tarantino que você está feito.
Talvez Django Livre pudesse ser um pouquinho mais bem amarrado, já que uma ou outra cena destoa do resto (estou pensando no momento em que a lembrança do ataque dos cachorros convenientemente vem à memória do Dr. King e em uma outra vingança, que acontece rápido demais). Mas são descompassos quase imperceptíveis nessa grande sinfonia de tiroteios, sangue, frases de efeito e música épica que é a película. Mais uma vez, Tarantino despeja criatividade em um rolo de filme e bota pra rodar, realizando mais uma produção envolvente, inspirada e ousada. O diretor/roteirista pode não ser o Django da vida real, mas não dá pra negar que ele acertou em cheio.

Aí vem Hollywood salvar o dia

Argo
5/5

Direção: Ben Affleck
Roteiro: Chris Terrio, baseado em artigo de Joshuah Berman

Elenco
Ben Affleck (Tony Mendez)
Bryan Cranston (Jack O’Donnel)
Alan Arkin (Lester Siegel)
John Goodman (John Chambers)

Em 1980, furiosos com a intervenção dos EUA na sua política, os iranianos invadem a embaixada americana e fazem um FUZUÊ ali dentro, sequestrando os diplomatas que estavam trabalhando – com exceção de seis funcionários marotos que deram no pé pela porta dos fundos, literalmente. Agora, com as tensões à flor da pele, a CIA recorre a Hollywood para resgatar a galera, criando um filme falso para acobertar a saída do pessoal.
Como ator, Ben Affleck é um ótimo diretor. Depois de pegar todo mundo de sopetão com o excelente Medo da Verdade e fazer o mundo inteiro pensar que enlouqueceu ao repetir a dose no sensacional Atração Perigosa, Affleck retorna com um thriller tenso, envolvente feito o rosto de uma morena de olhos verdes. Um talento tão surpreendente que dá vontade de chamar o Robin Williams e colocar o Ben Affleck em sessões dramáticas e intensas de psicologia com ele.

Inocentes estão em perigo. É hora de chamar… Hollywood!

Com uma trama absurda dessas (e baseada em fatos reais, o que nos diz muito sobre o mundo), seria muito fácil não levar Argo a sério. Para já aniquilar essa ideia, o filme começa com uma introdução impactante, com a IRANIADA tocando o terror de forma extremamente terrorífica na embaixada sem dó – e Affleck mostra tudo com a câmera na mão, sacudindo de perigo, enquanto a fotografia granulada, para dar um ar mais realista, grita a todo momento “fiquem tensos! fiquem tensos!”, o que inevitavelmente acontece. É uma abordagem mantida ao longo do filme pra mostrar que a cobra quer fumar mesmo, só aliviando um pouco nas cenas onde John Goodman e Alan Arkin aparecem, inevitavelmente um pouco mais coloridas e leves. É uma direção segura, que sabe bem onde quer chegar e constrói um clímax eficiente, auxiliado pela ótima montagem e trilhas – inclusive, o desenvolvimento do filme se mostra épico quando percebemos que estamos tensos mesmo sem nenhum assassino, armas, tiros ou primeira visita ao sogro em cena.
Argo também colhe os frutos de um ótimo roteiro, que, além de apresentar bem o mote político que vai dar início à algazarra, se preocupa tanto com a trama no Irã quanto a trama em Hollywood, criando personagens com características bem definidas e interessantes (embora mais tempo pudesse ser destinado aos fugitivos, que acabam se confundindo em alguns momentos). E se por um lado o perigo na parte iraniana é frequente como se troca sozinho a resistência do chuveiro, a trama que se passa no Tio Sam ganha em diversão e charme graças a John e Lester, duas personagens que vivem em chamas e conquistam o espectador com diálogos aniquiladores (“se tem cavalos no filme, é um faroeste”, “se vou fazer um filme falso, vai ser um sucesso falso”). A dinâmica que ambos trazem à história é um dos pontos altos do filme, convencendo que aquelas duas pessoas realmente são loucas o suficiente pra topar a empreitada.
O curioso é que, se um dos grandes méritos de Argo é seu diretor, um dos grandes problemas é o seu ator protagonista: inexpressivo, Affleck passa a impressão de que Tony não consegue diferenciar entre militares armados e raivosos e um chá da tarde (ou Tony tem alguma disfunção neurológica, como o Slevin Kelevra de Xeque-Mate?). E como é ele quem carrega o espectador por todos os lados da brincadeira, a produção não chega a atingir toda a carga dramática que poderia. Ao menos ele está cercado por um elenco competente, onde os destaques, além do enérgico Bryan Cranston, obviamente, são Goodman e Arkin – misturando simpatia e mal-humor a um sensacional timing cômico, eles obrigam a galera a levantar e fazer a “OLA” toda vez que estão em cena.
Contando ainda com uma ótima direção de arte, que reconstitui bem a época e dá personalidade aos ambientes internos, Argo é mais um “estou indo para casa com uma das mulheres mais bonitas da noite” de Ben Affleck – pena que se perde um pouco no drama familiar, que jamais é desenvolvido ou abordado de forma coerente, mas nada que estrague a experiência geral. Na verdade, a película parece ter os elementos certos para uma indicação ao Oscar, e, quem sabe?, talvez até uma vitória. É um filme “adulto”, envolve política, é bem dirigido, bem escrito, tem ótimas atuações, montagem… pode ser que, em 2013, o mundo constate que Ben Affleck tem dois Oscar na prateleira. E quem acompanha a carreira de ator dele sabe que, há alguns anos, essa afirmação seria uma história muito mais absurda do que aquela na qual Argo se baseia.