O dia em que eu fiquei trancado no elevador

Anteontem fiquei trancado em um elevador no trabalho. Eis a sequência de acontecimentos:

08h05m:
Entro sozinho no elevador e aperto o botão do décimo sétimo andar. Pouco antes do fechamento das portas, uma Morena Voluptosa (MV a partir de agora) se junta a mim vestindo roupas adequadas ao calor senegalesco. Como bom cavalheiro, fui extremamente discreto ao olhar para o decote.

08h05m35s:
Durante a subida, subitamente as luzes se apagam e o elevador para. O susto resulta em um grito feminino estridente, mas logo me recomponho.

08h06m:
MV e eu rapidamente nos rendemos ao primeiro estágio de ficar preso no elevador, a negação. Enquanto ela bota as mãos no rosto e diz “não pode ser”, eu aperto todos os botões do painel como se fossem plástico-bolha.

08h08m:
Nem sinal da energia voltar. Pergunto a MV se ela tem sinal de celular, questionamento respondido com a típica risada irônica de quem sabe das limitações de sinal de operadora. Ela faz a mesma pergunta e respondo que consegui acessar o Facebook.

08h09m:
Posto no Facebook dizendo que estou preso em um elevador. Ninguém aparece para ajudar. Descubro depois que a postagem recebeu 32 “curtir”.

08h10m:
O sinal do 3G se vai e leva embora a esperança.

08h11m:
Nada de energia, nada do elevador andar. MV e eu ficamos trocando olhares constrangidos. Ela pergunta se isso já tinha acontecido comigo. Respondo que sim, troco olhares constrangidos desde que tinha oito anos. Ela não ri.

08h14m:
Entramos naquele estágio das convenções sociais conhecido como “formulário”, onde as pessoas trocam informações sobre a natureza de seus trabalhos, tamanho das famílias, faculdade que cursaram, time para o qual torcem, tamanho do busto etc.

08h16m:
Descubro que MV cursa medicina e vejo minhas chances desaparecerem como lágrimas na chuva.

08h17m:
Ainda nada de elevador. Consigo encaixar umas duas piadas boas sobre medicina e subverto trinta anos de comportamento condicionado ao não erguer a mão solicitando um high-five.

08h18m:
MV parece um pouco mais à vontade e se empolga conversando sobre as aulas, disciplinas, professores e o aprendizado. Após a quarta expressão em latim, começo a cantar a música de Frozen na minha cabeça.

08h20m:
Percebo que nem mentalmente consigo atingir o tom de Elsa e volto à conversa, agora um solilóquio um tanto melancólico sobre ex-namorados. Sem saber direito o que está acontecendo e não querendo me comprometer, interajo através de um aceno de cabeça híbrido entre vertical e horizontal e que, tenho certeza, já vi em uma coreografia dos Backstreet Boys.

08h22m:
Minhas declarações compreensivas de desdém pela ala masculina e uma piada envolvendo o ex-namorado de MV, um bisturi, uma posição do Kama Sutra e muita dor parecem desarmá-la ainda mais. A conversa flui como se MV não fosse esculpida em mármore sexy e eu não estivesse vestindo uma camiseta do Batman.

08h26m:
A narrativa sobre ex-namorados cresce em intensidade. Começo um movimento para passar o braço ao redor dos ombros dela, mas ele é subitamente repelido por trinta anos de “a vida não é assim”.

08h30m:
MV interrompe o fluxo de decepções masculinas e fala que sou um ótimo ouvinte, alisando meu braço. Sorrio e sou simpático enquanto penso se no prédio há algum estabelecimento onde eu possa emoldurar o braço.

08h32m:
MV começa a me perguntar das minhas ex-namoradas e rir das respostas e das experiências. Por tudo que eu já li a respeito e vi em filmes e séries, tenho quase certeza de que estamos flertando.

08h32m32s:
Tiro o celular de canto e procuro por “flerte”. Sem sinal.

08h33m:
Como sempre acontece diante de possibilidades épicas, espero o inevitável momento em que o mundo vai acabar.

08h35m:
Sento no canto do elevador e ela senta ao meu lado. Conversamos sobre qualquer coisa que nos permita dar risadinhas e olhar um ao outro. Há um indício de tensão sexual no ar.

08h35m16s:
Sorrateiramente procuro por “tensão sexual” no Google. Sem sinal.

08h40m:
A conversa se intensifica. Pouco importa o que estamos dizendo, porque as palavras parecem povoar o espaço entre nós apenas para puxar um mais perto do outro. O contato físico entre as pernas dispostas lado a lado já é natural. Os olhares parecem mais tímidos, como que tentando esconder algo. A pele do meu braço roça na pele do braço dela, macia, lisa, e há uma certa eletricidade no ar. Viramos o rosto e nos olhamos, agora sem desviar. Os lábios entreabertos dela são o único indício de vulnerabilidade, e não precisa de mais do que isso. Estamos os dois aqui, só os dois, só nós existimos nesse universo paralelo, só nós existimos nessa realidade em que nos conectamos.

08h40m8s:
As luzes se acendem e o elevador volta a funcionar.

08h42m:
Levantamos com o movimento do elevador, dando risadas constangidas e sem saber direito como agir. Aqui jaz um clima romântico. Fico olhando para MV e toda sua voluptosidade e percebo que ainda há uma conexão. Penso em todas as vezes que não assumi o risco, que fugi para a zona de conforto e em tudo que não fiz e poderia ter feito. Trocamos mais um olhar e percebo que não quero MV na minha lista de “e se…?”. Ela me observa com uma curiosidade juvenil, um sorriso no rosto, uma expressão de expectativa, enquanto me aproximo do painel de botões. Viro o rosto na direção dela e lanço um olhar sedutor, perigoso, enquanto me obrigo a fazer algo digno de cinema e abro o painel e aberto o botão de trancar o elevador para que o universo congele por mais um instante para nós dois.

08h42m20s:
MV tem um faniquito bíblico e dispara um discurso ríspido sobre como acabamos de passar horas no elevador e que a situação era perigosa e finalmente temos a oportunidade de sair e respirar ar puro e eu arrisco botar tudo a perder trancando o elevador e que tipo de demente faria uma coisa dessas? e palavrões.

08h43m:
Aperto o botão e o elevador volta a andar normalmente enquanto fico tão vermelho de vergonha que minha pele começa a descascar.

08h45m:
MV desce no décimo primeiro andar com a expressão de raiva ainda tatuada no rosto, sem sequer um “tchau” de reconhecimento ou um sexo de despedida.

08h46m:
Reflito rapidamente sobre homens, mulheres, amor, nossas expectativas, nossos desejos, nossos corações quebrados, nossa impossibilidade de aceitar alguém que nos ama e decido desistir do compromisso e ir comprar cerveja.

08h47m:
Durante a descida, subitamente as luzes se apagam e o elevador para. Um grito feminino estridente rasga o ar.

Os sanduíches às duas da manhã

Um sanduíche tem um sabor diferenciado quando feito às duas da manhã. Acredito que seja pelo fato de destoar, de que sanduíches adornam cafés da manhã e almoços e jantas e lanches da tarde e refeições de última hora quando compromissos importantes estão batendo na porta, mas o frio e frequentemente alcoolizado véu da madrugada não é seu habitat natural (provavelmente por alguma questão envolvendo a quantidade de carboidratos nos ingredientes e a vontade que as pessoas têm de conseguir um abodmen trincado). Assim, entre os momentos em que o sol se deita e acorda de ressaca, as fortalezas de pão recheadas com queijo e gostos pessoais se tornam visitantes ocasionais, abrindo espaço para culinárias mais práticas como nuggets, comidas requentadas no microondas e miojos. Às duas da manhã, cortar uma fatia daquele queijo muito bom e impossível de cortar (lembrando sempre que a a qualidade do queijo e a facilidade de cortar fatias são inversamente proporcionais) é uma odisseia, e tais empecilhos tornam o sanduíche uma figura um tanto mítica durante a madrugada, uma aurora boreal culinária que surge frente às maravilhadas testemunhas para saciar sua fome de… bem, de fome mesmo.

Claro, os filisteus podem argumentar que o sanduiche das duas da madrugada é o mesmo das duas da tarde, que o pão contém a mesma quantidade de farinha e trigo, que o horário não influencia nos processos pelos quais os ingredientes passaram e que toda essa história é apenas impressão. Mas a realidade existe apenas da forma como a percebemos, e certamente o mesmo sanduíche vai ativar sinapses e funções diferentes no córtex cerebral se consumido de tarde ou de madrugada. A calma e a quietude da noite são preenchidas pelos sabores da refeição com mais intensidade. Há mais espaço para o sanduíche desdobrar suas expressões gustativas e olfativas, o mundo para por um momento para ver o que aquele intruso, aquele coadjuvante que normalmente surge como produto das circunstâncias – pouco tempo para comer uma refeição completa, um lanche para degustar assistindo a algum programa, uma alternativa comestível que abraça a praticidade -, pode realizar quando alçado à condição de protagonista sob a auspiciosa vigília da lua.

Lembram de Proust comendo o biscoito, não lembram? É a mesma ideia, mas, ao invés de resgatar sentimentos passados, o sanduíche das duas da manhã interage com a ausência dos elementos que costumeiramente vê ao seu redor, criando novas sensações. Ao invés de ativar a lembrança, cria a lembrança. E nos deixa ali, sentados, reflexivos, imaginando que há muito mais entre o céu e a Terra do que imagina nossa vã culinária.

O dia em que eu fui à Copa do Mundo

O futebol visto ao vivo não é nada glamouroso. Sem os enquadramentos cinematográficos, a montagem ágil, a narração empolgada, a câmera lenta, os replays, os gráficos, as análises, tudo se resume a uma visão ampla do campo, longe dos supercloses que captam olhos marejados e da edição que confere drama às coreografias involuntárias. Ao vivo, o futebol é despido de quaisquer adornos carregados de significado e retorna a uma forma simples, rústica, onde precisa conquistar as pessoas apenas pelo impacto das jogadas e comportamento da torcida, sem intermediários cujo trabalho é tentar tornar a partida o mais envolvente possível. Ao vivo, o futebol deixa de ser espetáculo.
O inacreditável míssil disparado por Tim Cahill aos vinte e um minutos do primeiro tempo, tatuando o travessão e empatando a partida contra uma equipe mais forte e que havia recém marcado, foi algo fora do comum. Talvez porque fosse uma partida fora do comum, repleta de jogadores fora do comum, torcidas fora do comum, importância fora do comum. Os primeiros passos em um Beira-Rio dividido entre o laranja pulsante dos holandeses e o incompreensível sotaque dos autralianos já indicavam se tratar de um jogo à parte, composto por uma atmosfera que há vinte anos eu vejo na televisão mas que só ontem realmente descobri: é a Copa do Mundo (dispenso o “FIFA” no final) criando um universo que só é possível acessar de quatro em quatro anos, que não existe fora desses trinta dias enlouquecidos de futebol e que, para alguém que desejava mais do que tudo ter visto ao vivo o gol genial de Hagi contra a Colômbia, o chute de Branco contra a Holanda, a subida de Romário contra a Suécia, a arrancada de Michael Owen contra a Argentina, os passes cirúrgicos de Beckham e Scholes, o domínio perfeito de Bergkamp em cima de Ayala, o trenzinho de Felipão após superar Van Basten, o toque simples e brilhante de Pirlo para Grosso, a redenção de Materazzi, os pênaltis quase seguidos entre Espanha e Paraguai, a maior defesa de todos os tempos realizada por Suárez, a cavadinha vitoriosa de um El Loco que fez jus ao seu apelido e o chute mais importante da história da Espanha desferido por Iniesta, possui um significado de mais de vinte anos de “imagina se eu estivesse lá”.
Quando Cahill bombardeou o gol holandês aos vinte e um minutos, dois australianos sentados atrás de mim pularam e gritaram e se abraçaram e nos abraçaram e desceram as arquibancadas correndo. O gol – talvez o mais bonito da Copa até aqui – foi marcado no lado da goleira onde eu estava sentado, e, mesmo a dezenas de metros de distância, vi ele muito mais de perto do que qualquer superclose de câmera poderia conseguir: vi ele das arquibancadas de uma Copa do Mundo, envolvido pelos gritos das torcidas, testemunhando a bola percorrer todo o caminho até sacudir as redes e mudar um país inteiro e, pela primeira vez na vida, sem precisar imaginar como seria estar ali. Porque ao vivo, quando deixa de ser espetáculo, é que o futebol se torna verdadeiramente espetacular.

Ginástica de hardware

Comprei um notebook há pouco mais de um ano com aquela fantasia de mobilidade, de que poderia sair com ele e sentar em alguma praça bonita com uma cerveja ao lado e escrever uma obra-prima, enquanto uma Melanie Laurent qualquer passa de boina e segundas intenções na minha frente. O notebook era a promessa de liberdade, o fim da ditadura de ter que ficar sentado em frente a uma mesa e olhando sempre para a mesma paisagem feita de gesso e pintura descascando.
Após a aquisição descobri que, no mundo do hardware, não há espaço para a praticidade. Certo, o equipamento é leve, eficiente, com dimensões compactas o suficientes para permitir sua realocação para basicamente qualquer lugar, mas essa expectativa de “a qualquer hora e em qualquer lugar” não leva em consideração a outra parte do hardware: o corpo. O corpo não é leve, não é eficiente e muito menos compacto, além de ser composto por um milhão de materiais diferentes que, se não forem colocados sob condições específicas de suporte, pressão, distensão e diagramação, insistem em doer.
Porque não existe realmente uma posição cem por cento ideal ou confortável para fazer uso do notebook. Deixar ele no colo parece ser a solução mais lógica, e até funciona por algum tempo, mas logo o esquadrão formigamento ataca e é preciso remanejar as pernas, aniquilando completamente a estabilidade do equipamento – e tentar digitar uma frase sequer sem estabilidade é um convite à insanidade. A cama surge como uma alternativa promissora, com seu colchão macio e suas lembranças das comoventes sonecas tiradas ali, só que não faz muito bem para a máquina e, se você deitar ao lado do dito-cujo, mantendo-se no primeiro estágio da posição “conchinha” (e sem a preocupação de não saber onde alocar o braço livre), perceberá após sete ou oito minutos que precisará de fisioterapia; se deitar e repousar o notebook em cima do peito, perceberá após sete ou oito segundos que precisará de uma massagem no pescoço.
Urge a necessidade de criarmos uma versão do Kama Sutra com notebooks, catalogar as posições confortáveis, prazerosas, relaxantes que podem ser realizadas para ter o equipamento ao alcance e totalmente operacional. Acredito que isso aumentará a produtividade de humanidade em cerca de todos os por cento, criando uma situação ideal onde podemos aproveitar ao máximo tudo que um equipamento poderoso nos oferece. Pois até aqui, depois de anos de experimentações, tentativas e frustrações, descobri que, amarga ironia, o melhor lugar para trabalhar com o notebook é em cima da mesa.

Samson

Ando bastante viciado nessa canção “Samson”, da Regina Spektor. Não entendo muito de música, mas percebo ali uma harmonia incrível entre as notas do piano e a voz – não só a questão de estarem afinadas uma com a outra, mas algo um pouco além, como se tivessem sido concebidas ao mesmo tempo, algumas notas criadas pela voz e alguns vocais pelas teclas, como se fossem exatamente a mesma coisa expressa de formas diferentes.
Mas tem um momento ali, onde ela canta “stars came falling on our heads”, que a voz da moça subitamente começa a ficar mais baixa, quase sussurrada, de uma cumplicidade comovente, e é nesse momento que eu sinto toda a doçura e intimidade envolvidos e consigo imaginar as luzes amarelas bruxuleando ao redor de lençóis improvisados, onde duas pessoas se submetem uma à outra em uma escolha que era impossível não fazer, enquanto lá fora as estrelas caem e os vulcões explodem e espadas e machados dançam por entre corpos de heróis e martires que jamais serão reconhecidos. Mas ali dentro tudo que importa é o que está ali e o que vai acontecer ali, como se o universo tivesse congelado naquele momento e tudo que existisse coubesse nessa canção onde uma voz doce e sensível canta sobre uma pausa momentânea do mundo e todos percebessem que talvez isso seja o máximo que se consegue e aceitassem que tudo bem, a vida não nos deve nada e qualquer momento de felicidade é tão importante quanto qualquer outro momento de felicidade..

Breves comentários sobre os últimos livros que li.

As Entrevistas da Paris Review – Vários
Como toda boa coletânea, As Entrevistas da Paris Review tem altos e baixos. É extremamente divertido ver Hemingway admitindo que dera uma resposta estúpida mas apenas porque a pergunta também era estúpida, ou Faulkner descartando os escritores e dizendo que só a obra é importante, mas a entrevista com W. G. Auden passa batida e a verborragia de Ian McEwan fica entediante às vezes. No fim das contas, a melhor é a de Amón Oz, de quem curiosamente nunca li nada – tirando do páreo a entrevista com Borges, claro, que não posso avaliar porque ainda não descobri o que veio antes: Borges ou a escrita.

Vida Querida – Alice Munro
Esse é um dos poucos vencedores do Nobel de Literatura que li, o que indica como sou desqualificado para falar qualquer coisa sobre o assunto. É um livro que sempre mantém um nível alto, não tem nenhum conto ali que faça o leitor lamentar não ter investido o dinheiro em cerveja, e sempre com uma sensibilidade tocante – que atinge níveis lacrimejantes em Amundsen e O Olho, entre outros. Ainda assim, confesso que no panorama geral não tive uma sensação NOBELÍSTICA, o que me faz pensar que talvez tenha levado o prêmio pela regularidade de qualidade nos contos,  o que me faz pensar que o Nobel é um grande torneio de pontos corridos.
Agora Deus Vai te Pegar Lá Fora – Carlos Morais
Esse na real eu já tinha lido, mas ficou ainda melhor na releitura. É uma daquelas obras carismáticas ao extremo, que certamente seriam extremamente populares em um eventual colégio de livros. Engraçada sem apelar, envolvente sem apelar, com uma galeria de personagens incrivelmente criativa e uma melancolia doce que despeja sentimentos no coração do leitor, Agora Deus Vai Te Pegar Lá Fora é uma daquelas surpresas literárias às quais a gente se apega e quer levar junto para sempre.
Condenada – Chuck Palahniuk
Sou um grande fã do Chuck Palahniuk (embora sempre tenha que conferir o nome dele no Google antes de escrever), tenho Clube da Luta tatuado no meu CÉREBRO, admiro muito a subversão e a forma com que ele jamais julga as personagens, mas Condenada parece um esforço menor. É extremamente eficiente e uma plataforma perfeita para a imaginação cruel do CHUCKÃO, que consegue ser criativo mesmo em momentos mais óbvios (como o do telemarketing), mas ainda assim soa um pouco contido demais, derrapando no tradicional em alguns pontos (estamos falando do cara que escreveu o conto Guts, afinal). Além disso, a personagem parece espertinha demais e fala de forma espertinha demais para alguém com 13 anos. Vale a leitura, entretanto, especialmente se você quiser conhecer o maligno sistema de telemarketing.

A Ilusão da Alma: Biografia de uma Ideia Fixa – Eduardo Giannetti

Esse é um daqueles “livros que fazem pensar”. A batalha de um sujeito tentando se desvencilhar da ideia de que seus pensamentos não são realmente seus, mas sim fruto de reações químicas, é envolvente e vai dar um nó no cérebro do leitor (mas um nó bom, não um nó no sentido “não tou entendendo nada aqui é melhor deixar o livro de lado e entupir o cérebro com álcool”). Uma jornada extremamente interessante e que vai te deixar pensando se o que você está pensando é realmente o que você está pensando.
Os Quatro Grandes – Agatha Christie
Mais uma daquelas grandes tramas de assassinato e mistério da tia Agatha, dessa vez envolvendo também uma grande conspiração. Sei que vou SECAR NA TOALHA, mas a capacidade da escritora de manipular as circunstâncias e levar a história até situações imprevisíveis é brilhante. Além disso, tem Hercule Poirot e o capitão Hastings, o que já é 90% da qualidade necessária para um livro.
Batman – O Que Aconteceu Ao Cavaleiro Das Trevas? – Neil Gaiman
Essa é uma daquelas histórias surpreendentes, com rompantes de criatividade e genialidade surgindo a todo momento. Mostra com dramaticidade e intensidade a relação das personagens de Gotham City com o homem-morcego, construindo, ao longo do caminho, revelações importantes sobre a personalidade do próprio Batman e a forma com que as pessoas o veem. E aquela sensibilidade no final da história é de sentar no cantinho e chorar.
A Dama do Cachorrinho – Tchekov
Tive uma experiência muito, digamos, de entender que nunca soube escrever após ler a coletânea de contos O Beijo, do Tchekov, esse russo cujo superpoder é visão de raio-x das almas das pessoas. Entretanto, esse A Dama do Cachorrinho não me deixou muito impressionado: alguns contos (como o que dá nome ao livro) realmente se destacam, mas outros, como A Morte do Funcionário e O Enxoval, me deixaram com uma expressão meio “é, tudo bem” no rosto. Queremos mais Enfermaria Nº6, galera. Mais Enfermaria Nº 6.
Um Estudo em Vermelho – Sir Arthur Conan Doyle
Após ficar completamente em chamas com a série Sherlock, decidi revisitar o mundo literário de Sir Arthur Conan Doyle. E Um Estudo em Vermelho funciona muito bem como apresentação de personagens e trama de mistério, tornando o processo investigativo sempre interessante por causa daquele lance onde o Sherlock pega umas coisas totalmente nada a ver e desenterra alguma conexão brilhante com o crime. O revés fica por conta dos cinco primeiros capítulos da parte 2: ainda que bem escritos pacas, sua importância para a história é questionável e o único sentido de sua existência parece a encheção de linguiça. Não chega a atrapalhar, apesar de ser um “mas o que diabos…?” de Wikipédia.
O Lobo do Mar – Jack London
Uma poderosa narrativa envolvendo náufragos, navios, pancadaria e palavras legais como “estibordo”. A atmosfera tensa da escuna Ghost, tomada de personagens peculiares e de um comportamento quase primitivo, atinge seu ápice no capitão Wolf Larsen: extremamente violento, impiedoso e materialista, ele é também um filósofo da condição humana, refletindo a respeito das escolhas possíveis e optando pelo caminho do tocar o terror em todo mundo alucinadamente porque é o que mais se assemelha à nossa existência animal. Os diálogos entre ele e van Weyden são sempre interessantes, e acabam elevando  O Lobo do Mar para outro nível.

Entendendo o Super Bowl

O que é o futebol americano?
É como aquele momento onde um grupo de pessoas percebe um ladrão correndo e se atira em cima do cara para impedir que fuja, mas com patrocinadores. O esporte consiste em dois times – geralmente compostos por híbridos entre seres humanos/whey protein – se empurrando até que alguém faça a bola (que não é uma bola) cruzar uma linha a um monte de jardas de distância. Tal qual acontece com solteiros, os jogadores só usam a mão para atingir seus objetivos – qualquer um pode participar de qualquer jogada, entretanto, desde que tenha mais de cem quilos.
Se só pode usar a mão, por que chamam de “futebol”?
Não sei. Eles também medem a distância em jardas, então imagino que seja simplesmente dislexia (há um tal de field goal onde é permitido bicar a bola (que não é uma bola), mas vamos lá, é uma solução paliativa).
Quem vai jogar no Super Bowl desse ano?
Denver Broncos e Seattle Seahawks (sim, os times da NFL são nomeados de acordo com nenhum critério). Há um grande bafafá porque são os dois primeiros estados a legalizarem o uso da maconha para fins recreativos – isso significa que seu amigo maconheiro vai incorporar “a planta possui propriedades que incrementam o desenvolvimento do esporte” ao seu discurso pró-erva.
Quais são os destaques de cada time?
No lado do Denver Broncos o destaque é o quarterback Peyton Manning, que superou diversas situações difíceis ao longo da carreira, como uma operação no pescoço e no braço em 2011 e o fato de que quase tem o nome de uma parte do corpo humano. O destaque de Seattle eu não sei. Eddie Vedder…?
O que é um quarterback?
Em linhas gerais, quarterback é o jogador que atira a bola o mais pra frente possível. É a glamourização do zagueiro limitado.
Quem vai tocar no intervalo?
Bruno Mars. E os Red Hot Chilli Peppers também. Que só devem ter marcado presença por causa do lance da maconha.
Quanto tempo dura?
São quatro tempos de quinze minutos. Mas o jogo para a todo momento para os técnicos revisarem estratégias e fingirem que existe ciência e matemática naquele desembarque da Normandia em campo, então a janela de duração vai de algumas horas até a próxima fragmentação dos continentes do planeta.
Como é a contagem de pontos?
Bem, o touchdown vale seis pontos, com a possibilidade de um ponto extra na tentativa de chute ou dois pontos em uma nova tentativa de cruzar a linha. E o field goal vale três pontos, e não um, porque sim. E um tal de safety vale dois. Ou seja, ninguém sabe, e é bem possível que a posição dos astros influencie na contagem. Por via das duvidas, comemore só quando a bola cruzar a linha.
Ok, existe algum motivo para assistir ao Super Bowl?
Sim: cheerleaders.


Não é futebol americano. Mas alguém realmente se importa?

Quem tem medo do lobo mau?

O Lobo de Wall Street (The Wolf of Wall Street)
5/5

Direção: Martin Scorsese
Roteiro: Terence Winter, adaptado do livro de Jordan Belfort

Elenco
Leonardo DiCaprio (Jordan Belfort)
Jonah Hill (Donnie Azoff)
Margot Robbie (Naomi Lapaglia)
Matthew McConaughey (Mark Hanna)

Nos anos 80, quando Wall Street era uma terra de charme, dinheiro e cocaína, Jordan Belfort se junta aos corretores do distrito financeiro mais famoso do mundo. Logo ele começa a ter sucesso, usar drogas, transformar o escritório em um pardieiro e, basicamente, viver a vida da forma mais ensandecida possível.

Não fosse a troca para a tecnologia digital, qualquer pessoa poderia achar que o copião de O Lobo de Wall Street foi revelado em uma latinha de energético: o filme é intenso, forte, rápido, divertido, engraçado e completamente empolgante. É, assim como Cassino (também dirigido por Scorsese), uma história de crescimento financeiro baseado em atividades no limbo entre o legal e o ilegal – só que a nova película troca a violência pela loucura da riqueza, consumismo e luxúria. De certa forma, imagino que O Lobo de Wall Street seja o equivalente fílmico a cheirar cocaína, o que faz sentido, visto que esta é um elemento importante da película.

Assim como anões.
Para isso, Martin Scorsese cria uma atmosfera enlouquecida não só na mise-en-scène – onde tudo é intenso e gritado e gestual e acaba de alguma forma com mulheres nuas -, mas também na forma, com a montagem ágil e a câmera constantemente em movimento (naqueles travellings elegantes que o Scorsese sabe fazer muito bem). É uma construção assaz inspirada, que se aproveita da quebra da quarta parede, câmera lenta, tela congelada e flashbacks rápidos (o do carro e o do avião, por exemplo) para tornar a coisa toda mais dinâmica – claro, o diretor usa esses recursos com parcimônia, sem exagero, para não tirar a atenção do que está acontecendo em quadro. É importante que a forma reforce a atmosfera da cena, e não chame a atenção para si mesma (imaginem um filme desses dirigido por Guy Ritchie e vocês terão uma ideia).
E é uma decisão mais do que acertada para companhar a trajetória de Jordan Belfort, que, com frases do tipo “e eu fiquei puto da cara porque era menos de um milhão por semana”, personifica toda a loucura que sempre se imaginou de Wall Street. Claro, o roteiro faz questão de mostrar o quanto ele é dedicado, competente (a cena onde todos param para ver ele trabalhar) e patologicamente apaixonado pelo que faz (as conversas por telefone onde ele fica gesticulando para o interlocutor), transformando-se em uma pessoa arrogante o suficiente para achar que pode subornar dois agentes federais – um comportamento que divide com Donnie, mais um tresloucado repleto de falas épicas (“quer cheirar carreiras de fermento, é isso?“) e que ajuda Jordan a transformar a Stratton Oakmont no pardieiro definitivo. Percebam que as características dos dois são tão fortes que, a partir de certo momento, aceitamos toda a balbúrdia da empresa como algo natural. A megalomania da dupla, regada a muita cocaína e quaaludes, é ilustrada de forma brilhante por situações completamente absurdas e que, muitas vezes, humilham a palavra “épico” (aquela cena envolvendo os quaaludes poderosos sem dúvida constará de qualquer lista de melhores momentos em 2014. E recém estamos em janeiro).
Além disso, a narração em off é bem utilizada para explicar e avançar a história sem jamais ser excessivamente didática, o que acaba a tornando mais um dos elementos divertidos do filme (“é como tomar sol antes dele aparecer“). Mas o problema é que, no meio dessa diversão total e absoluta, não há muito espaço para caracterizar as personagens: praticamente todas falam do mesmo jeito e reagem do mesmo jeito e buscam a mesma coisa. Ok, dá para entender isso como uma generalização ao espírito de Wall Strett, uma declarção de que todos ali eram fora da casinha, mas isso diminui o envolvimento com qualquer situação mais pessoal (o drama de Jordan no final, por exemplo). Aliás, há uma tentativa de arco dramático extremamente desnecessária, colocando o protagonista inicialmente como alguém buscando trabalhar de forma honesta: a caracterização inicial, “do bem”, e tão rápida e superficial que jamais gera impacto, tornando frases como “você virou uma pessoa completamente diferente” soam deslocadas feito a canela do Anderson Silva.
Já o elenco surge completamente em chamas, terraplanando tudo e todos à sua frente com atuações poderosas. Começa com Matthew McConaughey (o grande “como assim?!” de 2013) construindo um Hanna gestual e amalucado – mas repleto de carisma – e continua com Jonah Hill, que encarna Donnie com a intensidade de um gordinho tentando se vingar de tudo que os gordinhos sofraram na infância, criando sequências memoráveis (como a do peixe) e utilizando sua habilidade ímpar de xingar para tornar tudo ainda mais megalomaníaco (além de usar trejeitos um pouco mais femininos, denunciando a dubiedade da sexualidade do sujeito). E se Margot Robbie consegue encantar com seus olhares e sorrisos e beleza (certamente a atriz foi feita no Photoshop e criada usando uma impressora 3D), Leonardo DiCaprio tem a grande atuação de sua carreira, transformando Jordam em uma força da natureza, a energia em forma de pessoa, sempre falando alto, sempre tendo certeza de sua posição e sempre doando 100% de tudo que tem (um contraste interessante com o Jordan mais jovem, que chega para conversar com Hanna falando de forma bem mais tranquila e baixa). O ator ainda tem certa dificuldade de se perder na personagem, especialmente nos momentos mais íntimos, mas é seguro dizer que carrega O Lobo de Wall Street de forma épica.
Enquanto isso, a parte técnica pode se comportar de forma tão megalomaníaca quanto Jordan, pois atinge níveis definitivos de qualidade – e é uma pena que os efeitos especiais do filme, completamente “escondidos”, talvez jamais tenham o reconhecimento que merecem. E boa parte da função deles é em prol da direção de arte, que se encarrega de mostrar os exageros daquele mundo, com cenários sempre grandiosos e luxuosos, decorados quase como palácios, ao mesmo tempo em que transforma o escritório em um ambiente despojado ao variar os tipos de terno e colocar alguns figurantes sem o paletó (e é interessante perceber que, quando era “honesto”, Jordan vestia um terno cinza claro, ao passo que depois que a “sujeira” começa as cores ficam escuras). Como se não fosse o suficiente, a trilha inspirada consegue marcar o ritmo da brincadeira e ainda atuar de forma simbólica (por exemplo, os versos de Everlong “if anything could ever feel this real forever”) são ouvidos logo antes da vaca ir pro brejo.
Assim, O Lobo de Wall Street é uma grande e frenética vitória por parte de seus realizadores. Scorsese tira de letra a dificuldade de filmar exageros sem soar caricatural ou destoante, e isso em uma história cujo protagonista leva uma vida tão intensa que é capaz de dormir pilotando um helicóptero. Repleta de grandes sacadas, cenas inesquecíveis e Margot Robbie pelada, a produção é mais um acerto para a carreira do diretor, cujo talento e capacidade continuam tinindo. Em determinado momento, Hanna fala que ninguém sabe nada de como as ações vão se comporta na bolsa de valores, mas uma coisa é certa: apostar em Scorsese é garantia de retorno.

Sobre um sorvete.

Eu nunca tinha reparado, mas colocar em um pote bolas de sorvete de sabores diferentes pode ser um fardo. Quer dizer, como se come um sorvete com essa configuração? Tipo, se for de chocolate e creme, existe alguma etiqueta sobre qual é o primeiro sabor a ser devorado? Devo dar preferência ao chocolate, porque ele parece ser a grande força dos doces mundo afora, o blockbuster dos sorvetes? Ou começo pelo de creme, assumindo uma postura mais alternativa e mostrando que não, eu não vou me render ao monopólio chocolateiro? Será que devo ir alternando, buscando na sobremesa um equilíbrio simbólico para o paradoxo da condição humana, onde tentamos ser todos diferentes mas iguais de certa forma? Mas nesse caso não pode acontecer que o chocolate, com uma base sólida formada por grandes corporações e anos de lavagem cerebral através de sua imposição em todas as sobremesas, consiga impor seu gosto sobre o outro? Ou o de creme ter cuidadosamente planejado essa imagem alternativa, essa abordagem desprendida do mainstream, justamente para usar gente como eu como massa de manobra em uma longa estratégia para sobrepujar o chocolate? Seria o de chocolate autêntico por incentivar o hedonismo com seu sabor inesquecível? Ou o de creme, claramente em desvantagem frente ao paladar, é uma lembrança de que os sabores verdadeiros da vida nunca te satisfazem completamente, deixando sempre uma abertura para percebermos que não existe perfeição entre o céu e a Terra? E seria eu, o agente de todas essas possibilidades, eternamente dividido entre chocolate e creme? Parte de mim deseja a fuga açucarada e a sobrecarga dos sentidos, enquanto a outra parte busca entender que a felicidade incompleta é o único caminho para a compreensão das nossas lutas e da nossa existência?

E será que eu, frente a tantas reflexões, deveria ter compreendido que, dadas as circunstâncias climáticas e as propriedades físicas do objeto, a merda do sorvete ia derreter enquanto eu ficava filosofando?

A problemática da porção.

Bares, restaurantes e outros recintos culinários mundo afora se aproveitam do fato de que, nessa realidade de temperos e acompanhamentos, há só uma unidade métrica para a quantidade de comida no prato: a porção. E ela está sempre presente. No happy hour, na janta, na entrada, na saída, no “beliscar alguma coisa”. O prato principal é o líder, é por ele que praticamos o capitalismo desenfreado, mas o dito-cujo é sempre seguido cegamente por diversas porções – arroz, pão, batata-frita -, que, juntas ou separadas, estão sempre gravitando em torno do prato principal (que provavelmente tem medo de ficar sozinho. É a versão alimentícia de uma tia tomando uísque com Red Bull).
O grande problema, claro, é que ninguém sabe exatamente quanto é uma porção. Não existe uma medida pré-definida. Tal qual a arte e os horários de ônibus em Porto Alegre, a porção é subjetiva. É uma unidade de medida que significa uma coisa para cada pessoa, depende do que essa pessoa acredita, existindo assim em um plano puramente espiritual e desprovido de evidências materiais – basicamente, é uma questão de fé (talvez a porção tenha surgido na repartição do pão na última ceia. Reflitam). O engajamento da sociedade em tal métrica inexistente é tão demente que inventaram até a meia porção, uma metade de algo que não se sabe o que é, cinquenta por cento do infinito, como alguém que dá direções dizendo “ah, claro, sim, isso fica logo ali passando o exato centro geográfico do universo”.
A conclusão inevitável é que a porção falha miseravelmente em sua empreitada métrica, servindo apenas como ornamento para as expressões pessoais que vão realmente definir o quanto foi servido (“é bem servido”, “vem pouco”, “dá pra duas pessoas”, “é tipo uma rave pra gordos”). Ainda existem aqueles que tentam encontrar alguma luz nessa escuridão, mas, data a já comentada subjetividade de coisa, acho que podemos aplicar aqui a lógica do copo: se a pessoa acha que uma porção é pouco, é pessimista; se acha que é bastante, é otimista.