A fantasia definitiva

Ele estava na minha mão quando levantei sofá. E talvez “levantei do sofá” não seja tão preciso quanto “fui ejetado do sofá por uma poderosa onda de adrenalina, e uma daquelas ondas de tsunami com o tamanho de um desastre”. Segurava ele só com a minha mão direita, apertando em uma das extremidades ergonômicas que o fazem encaixar tão bem entre os dedos, anos e anos de engenharia para esconder placas e circuitos debaixo de um design elegante e não-ofensivo. A energia cinética que bombeava inquietação pelo meu corpo tomou conhecimento disso, do peso, tamanho, formato, aerodinâmica dele, percebeu se tratar de um objeto maciço o suficiente para percorrer os princípios básicos da física mecânica com a graça, harmonia e estoicismo exigidos no momento. Olhei para a frente, sem saber o que procurar. Um pouco à direita, a porta da cozinha e um espaço desconvidativo e, por que não?, até certo ponto sagrado. Um pouco à esquerda, um piano antigo abarrotado de fotos antigas e lembranças de épocas melhores. Entre os dois, cerca de trinta centímetros de parede. Limpa. Branca. Vazia. Submissa. Uma tela esperando ser pintada.

Instintivamente recuei o braço direito, utilizando a mão esquerda e movendo a perna esquerda para o mesmo lado para que impulso + equilíbrio se abraçassem como velhos amigos. Nunca joguei ou vi uma partida de beisebol na vida, mas neste momento, realizando este movimento, eu poderia estar no centro do Fenway Park, perto daquela almofadinha marrom e esperando o apito ou seja lá qual sinal beisebolzístico dá início à jogada. Dizem que o medo da morte é um arquétipo, conceito comum a todos os seres humanos independente de nacionalidade, idade, educação etc, e, tomando consciência do coreografia inconsciente que estou fazendo, cruza pela minha cabeça a ideia de que o lançador de beisebol também seja um arquétipo.

Tudo se move em câmera lenta para que a expectativa do acontecimento possa ser sugada até o nariz sangrar de tanta antecipação. Já consigo sentir o cheio das gargalhadas histéricas e lágrimas de êxtase que vão preencher o universo inteiro, um daqueles momentos que separam o mundo entre o antes e o depois, o zênite de tudo que a humanidade foi é e será, o vai se fuder mais bigbangeano e definitivo que alguém já imolou em cima dessa tecnologia, cacete. O vento sopra dramaticamente pela janela e a iluminação fica mais heróica. Termino de arquear o braço e começo o movimento para a frente. A um quilômetro dali, as pessoas sentem que algo vai acontecer. Janelas trincam. Os animais se tornam inquietos. As crianças choram. Em algum lugar, Carmina Burana começa a tocar.

Então vem o superego, vestindo sua camisa engomada para dentro das calças e seu cabelo lambido para trás, arrumando os óculos e conjugando os verbos corretamente, e injeta um pen drive no sistema límbico para disparar o vírus “e se…?”. No meio do agora desconjuntado passo beiseboliano, hipóteses começam a se formar. Preços. Gastos. Dívidas. Atitudes impulsivas. A melhor decisão. Arrependimento. Desespero. Niilismo. A melhor decisão. Oquevoufazeragorafobia. Tudo acontece em milésimos de milésimos de segundos, mas é o suficiente para jogar uma âncora e iniciar o longo e doloroso e broxante e frustrante processo de hesitação. De repente, toda a certeza se esvai e o que sobra é a melhor decisão a longo prazo, a escolha que trará mais benfícios para todas as pessoas e coisas do mundo em todas as circunstâncias e características possíveis. E é impossível fugir dela.

Desvio o olhar por um segundo. Minha visão encontra a tela da TV, onde simulacros de uniforme correta e bagaceiramente idênticos aos da vida real celebram o gol fisicamente impossível que me eliminou da competição. Quando me dou conta, estou observando a graça e a harmonia com que o controle do Xbox percorre o trajeto até o choque kamikaze contra a parede da sala.