De carros e caracteres

Já faz um tempinho que eu parei de ler sinopses de filmes. Quer dizer, não parei parei, não da mesma forma que comidas fabricadas e entregues em avantajados veículos automotivos pararam de ser baratas, por exemplo, ou que o Johnny Depp parou de fazer filmes bons. Só cheguei em um ponto onde ler a sinopse não é mais uma etapa capital do processo, e, muitas vezes, assisto à produção por indicação de amigos/conhecidos em cujo gosto confio ou graças aos artistas envolvidos (se David Fincher fizer um épico bíblico de quatro horas sobre a vida de uma telha, estarei lá no primeiro lugar da fila e lendo o verbete sobre “telhas” na Wikipédia para entender as sutilezas).

Isso passou por um lance que é tipo uma epifania sem banheiras ou eurekas! onde o meu córtex pré-frontal, em um raro momento de sobriedade, percebeu que o assunto de um filme não é tão importante quanto a abordagem – tramas megalomaníacas podem resultar em mergulhos espirais em direção ao fracasso (abraço, A Viagem!) e histórias simples podem resultar em produções acachapantes (abraço, O Lutador!). Meio que não há como saber antes de assistir, e, tal qual acontece com a chuva, o que dá para tentar antecipar são alguns sinais que eventualmente podem estar enganados (abraço, Lincoln!).

Parece lógico também que tal característica se estenda à literatura, ou seja roubada dela, já que antes do cinema veio a literatura (e antes de literatura veio Borges). Lembro bem de um conto do Tchekov (escolha sua grafia favorita) chamado Uma História Enfadonha que, com assunto aparentemente enfadonho e personagens aparentemente enfadonhas, nada tinha de enfadonho graças à maestria com que o russo despejava as frases nas folhas enquanto provavelmente enchia o cu de vodka e brigava com a Ucrânia ou qualquer dessas coisas que os russos fazem.

Dia desses topei com esse The Driver’s Seat na New Yorker, um daqueles relatos obliterantes que acendem o pavio para explodir a inveja escritística no leitor. O tópico não poderia ser mais banal – as percepções de um sujeito na meia-idade que só agora está aprendendo a dirigir -, mas o escritor Adam Gopnik consegue dar ao texto o mesmo nível de fluidez que ele não consegue dar ao carro, atirando a todo momento observações pertinentes, associações longínquas mas pertinentes, relacionando a experiência com outras experiências e conseguindo extrair dela significados que ultrapassam em muito o simples deslocamento via combustível fóssil.

Sugiro que todos (que otimismo falar no plural) se sentem em uma poltrona conforável, peguem uma cerveja/café/água/refrigerante/Toddynho e se preparem para alguns momentos de inspiração impressa. Aqui um tira-gosto (tradução livre):

A discrepância entre dificuldade e perigo é a assinatura da nossa civilização, de metralhadoras a bombas atômicas. Você pressiona um pedal e duas toneladas de metal descambam pela avenida; você puxa um gatilho e vinte inimigos morrem; você aperta um botão e cidades queimam. O ponto de vivver em uma sociedade tecnologicamente avançada é que o mínimo de esforço pode produzir o máximo de resultado. Facilitar o que é difícil é o caminho para a conveniência; é também o caminho para a catástrofe. Perceber o quão perto do desastre estávamos a cada momento ajudou a acionar o meu botão do pânico, e, enquanto a cantoria e os comentários do Arturo ajudaram a reduzir um pouco do pânico, eu tentei encontrar outras formas de supará-lo.

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