Menos números, mais Atlas

Sites com dicas de viagens são incrivelmente úteis. Eles ajudam a economizar tempo e dinheiro, a descobrir atalhos, compreender obstáculos, decifrar enigmas – tivesse eu utilizado o artifício de percorrer blogs e páginas especializadas antes de viajar para a Europa, provavelmente o mistério de descobrir como se atravessa a rótula para chegar ao Arco do Triunfo, em Paris, fosse exigir menos tempo e muito menos ofensas ao sistema atravessário de rótulas francês. Uma simples informação pode evitar que você literalmente fique andando em círculos à procura de um mínimo sinal de como seguir em frente, como se uma viagem fosse um adventure point-and-click dos anos 90, e a quantidade de informação objetiva dispensada por milhares de sites www afora é tipo maior do que qualquer hipérbole sem graça que eu fosse colocar aqui.

Ando sentindo falta de coisas menos objetivas, entretanto. Menos embasadas em números, menos argumentativas; mais reflexivas e pessoais. Algo que não tente capturar outro algo como esse algo é, mas sim como o escritor/escritora vê esse algo. Uma interpretação da realidade, trazendo associações diferentes e desenvolvimentos diferentes e todas aquelas coisas que fazem um texto evoluir até um determinado ponto onde o leitor compreenda aquele ponto de vista mesmo que construído sobre lógicas muito particulares.  Que não seja apenas útil, ou necessariamente útil, mas que ao menos provoque algum tipo de reação – diversão, iluminação, catarse etc. Frequentemente alguém consegue pegar esse grande fuzil de precisão que é a escrita e acertar em cheio na definição de determinado objeto/pessoa/local, e ler esse tipo de coisa sempre provoca aquele sorriso involuntário e redecora a sala de estar do nosso cérebro para que a gente consigo incorporar esse tipo de reflexão.

Ainda lembro o quanto Nick Horby parecia estar me descrevendo ao falar de futebol em Febre de Bola. Ou como Borges usou um simples brioche para falar de Paris em Atlas, o maior conjunto de relatos de viagens desde que o universo era uma bolinha anti-stress de energia e decidiu explodir. Claro, não espero que a cada megabyte caminhado apareça um Hornby e muito menos um Borges, mas mesmo textos menos ambiciosos podem se tornar incrivelmente particulares e envolventes – já falei aqui sobre o artigo que contempla um adulto aprendendo a dirigir, e este Leite Moça é melhor que Nutella despeja verdades sem piedade nenhuma. Eu mesmo tentei fazer algo do gênero falando sobre Paris, embora com uma taxa de sucesso incrivelmente inferior.

Porque sites de viagens que postam as dicas, os atalhos, os jeitinhos, as informações etc são incrivelmente úteis. Mas, gostando ou não, realizar uma odisseia para conseguir atravessar a rótulo e chegar ao Arco do Triunfo me deu uma história.

De carros e caracteres

Já faz um tempinho que eu parei de ler sinopses de filmes. Quer dizer, não parei parei, não da mesma forma que comidas fabricadas e entregues em avantajados veículos automotivos pararam de ser baratas, por exemplo, ou que o Johnny Depp parou de fazer filmes bons. Só cheguei em um ponto onde ler a sinopse não é mais uma etapa capital do processo, e, muitas vezes, assisto à produção por indicação de amigos/conhecidos em cujo gosto confio ou graças aos artistas envolvidos (se David Fincher fizer um épico bíblico de quatro horas sobre a vida de uma telha, estarei lá no primeiro lugar da fila e lendo o verbete sobre “telhas” na Wikipédia para entender as sutilezas).

Isso passou por um lance que é tipo uma epifania sem banheiras ou eurekas! onde o meu córtex pré-frontal, em um raro momento de sobriedade, percebeu que o assunto de um filme não é tão importante quanto a abordagem – tramas megalomaníacas podem resultar em mergulhos espirais em direção ao fracasso (abraço, A Viagem!) e histórias simples podem resultar em produções acachapantes (abraço, O Lutador!). Meio que não há como saber antes de assistir, e, tal qual acontece com a chuva, o que dá para tentar antecipar são alguns sinais que eventualmente podem estar enganados (abraço, Lincoln!).

Parece lógico também que tal característica se estenda à literatura, ou seja roubada dela, já que antes do cinema veio a literatura (e antes de literatura veio Borges). Lembro bem de um conto do Tchekov (escolha sua grafia favorita) chamado Uma História Enfadonha que, com assunto aparentemente enfadonho e personagens aparentemente enfadonhas, nada tinha de enfadonho graças à maestria com que o russo despejava as frases nas folhas enquanto provavelmente enchia o cu de vodka e brigava com a Ucrânia ou qualquer dessas coisas que os russos fazem.

Dia desses topei com esse The Driver’s Seat na New Yorker, um daqueles relatos obliterantes que acendem o pavio para explodir a inveja escritística no leitor. O tópico não poderia ser mais banal – as percepções de um sujeito na meia-idade que só agora está aprendendo a dirigir -, mas o escritor Adam Gopnik consegue dar ao texto o mesmo nível de fluidez que ele não consegue dar ao carro, atirando a todo momento observações pertinentes, associações longínquas mas pertinentes, relacionando a experiência com outras experiências e conseguindo extrair dela significados que ultrapassam em muito o simples deslocamento via combustível fóssil.

Sugiro que todos (que otimismo falar no plural) se sentem em uma poltrona conforável, peguem uma cerveja/café/água/refrigerante/Toddynho e se preparem para alguns momentos de inspiração impressa. Aqui um tira-gosto (tradução livre):

A discrepância entre dificuldade e perigo é a assinatura da nossa civilização, de metralhadoras a bombas atômicas. Você pressiona um pedal e duas toneladas de metal descambam pela avenida; você puxa um gatilho e vinte inimigos morrem; você aperta um botão e cidades queimam. O ponto de vivver em uma sociedade tecnologicamente avançada é que o mínimo de esforço pode produzir o máximo de resultado. Facilitar o que é difícil é o caminho para a conveniência; é também o caminho para a catástrofe. Perceber o quão perto do desastre estávamos a cada momento ajudou a acionar o meu botão do pânico, e, enquanto a cantoria e os comentários do Arturo ajudaram a reduzir um pouco do pânico, eu tentei encontrar outras formas de supará-lo.